Vesícula

Acordo com uma dor lancinante no abdome. Olho o relógio: duas da manhã. Se eu não voltar a dormir não vou conseguir treinar amanhã. Terá sido algo que comi? Tirando os blanquets de peru não havia outro suspeito em potencial. Tento encontrar uma posição mais confortável. Rolo de um lado, rolo de outro e não consigo achar nenhuma que alivie a dor. Me levanto. Tomo um banho quente. Água quente costuma ter efeito analgésico. A dor melhora um pouco. Pego o celular e mando uma mensagem para Wandréa. Ela é médica e seus diagnósticos telefônicos são precisos. Já identificou duas apendicites desta forma. "Tá acordada"? Infelizmente não.

Levanto-me para chamar um táxi. 3321-303... Desisto. Não há de ser nada demais. Só uma infecção intestinal que não dá nem diarreia nem vontade de vomitar. Hum... Só que não. Ligo novamente para o táxi. Desço três lances de escada e vou para o hospital sem trocar uma palavra com o taxista.

Mando uma mensagem para Wandréa: "Sentindo muita dor. Abdominal. Lado direito. Tô indo pro hospital". "Região da vesícula"

O segurança e uma moça me olham mas não indicam para onde devo me dirigir. Resolvo pegar uma senha, só para ver se as engrenagens se movem. Eureca. Uma auxiliar surge de dentro do acolhimento e começa a fazer a anamnese inicial. Coloca meu dedo num oxímetro e o braço num aparelho de pressão. O aparelho infla, desinfla. Infla, desinfla. Infla, desinfla. O braço já começa a doer mais do que o abdome. Ela se convence que com aquele aparelho não vai e me leva para outra baia que tem um aparelho... do mesmo modelo. E o resultado... o mesmo! Ela desiste e me mandou para a abertura de prontuário.

Tec, tec, tec. Tec, tec, tec. Tec, tec, tec. Depois de uns 5 minutos do som de teclas de computador, percebo que há alguma coisa de errada. Me inclino para o monitor do computador e vejo que ela está com dificuldades de transcrever o número da carteirinha do plano de saúde para o sisteminha do computador. Dito o número para ela e depois de sugerir que acrescentasse o número de ordem, meu nome surge magicamente na tela do computador. Tira cópia dos meus documentos, me manda assinar umas guias em branco e dali me encaminha para os bancos desertos em frente aos consultórios.

O médico me faz algumas perguntas. Me manda deitar na maca e apalpa minha barriga por todos os lados. Diz que a dor está na região da vesícula mas que acha que pode ser pedra no rim. Solicita exame de sangue, uma tomografia e um ultrassom.

- Dá para aguentar a dor? Se você fizer logo os exames talvez dê tempo de eu dar uma olhada antes do meu plantão acabar.
- Ok. Dá sim.

Me dirijo ao guichê que diz "Autorização de exames". Não é aqui. Imagens é no final do corredor à esquerda. Tem exame de sangue? Se tiver é aqui na frente.

A enfermeira que vai colher meu sangue pergunta:

- Tudo bem?

Eu a olho e ela se retrata:

- Se tivesse tudo bem a gente não estaria aqui, né?

Ela só estava tentando ser simpática mas estou de mal-humor. Dali vou para o guichê de atendimento da radiologia. A atendente me retém a solicitação do ultrassom e me indica o caminho da tomografia:

- Primeira porta à esquerda depois do cruzamento com o pronto-socorro. O técnico já está indo para lá.

A porta está trancada e diz entrada de macas. Toco o interfone e ninguém atende. A dor aperta e eu me sento no chão para ver se ela dá uma trégua. Um vigilante me observa à distância, mas prefere não se envolver. Tento a porta ao lado. Consigo entrar na tomografia mas a sala está deserta. Sento-me nas cadeiras, o técnico aparece e faz o exame. 3 horas para sair o resultado.

- Dá para ver alguma coisa?
- Só o médico pode te dar o resultado.

Volto para a recepção da radiologia.

- O Dr. falou que você tem que estar em jejum para fazer o ultrassom. Então, é para você voltar depois das 7.
- Mas eu estou em jejum. Desde às 10 da noite.
- Bem foi o que o dr. me falou.

Olho o relógio. Ainda são 5:30.

- E o que eu devo fazer? Voltar para casa? Aguardar naquelas cadeiras? A questão é o jejum ou o fato do doutor não estar no hospital?

Ela limitou-se a dar de ombros e eu fui para o pronto socorro, fazer a medicação. Buscopan. Minha visão fica turva e eu não consigo mais me comunicar por meio de SMS com Wandréa. Câmbio e desligo. A dor vai passando à medida que o remédio vai fazendo efeito e eu consigo finalmente dormir numa das poltronas da emergência.

O médico me acorda com o resultado da tomografia.

- Tem duas pedras na sua vesícula. Vai ter que operar.
- Agora?
- Bem. A dor passou com a medicação?
- Na realidade ela já tinha se deslocado da direita para o centro de meu abdome.
- A pedra deve ter se deslocado. Deixa eu te mostrar.

Ele me faz um desenho do sistema digestivo completo. Deve aplicar seus conhecimentos das aulas de anatomia diversas vezes por semana. Me explica que o grande risco é as pedras se fragmentarem, se deslocarem e entupirem o canal que liga o pâncreas ao duodeno. Aí há o risco de uma pancreatite aguda e de uma morte miserável.

Ainda estou avaliando. Aí ele jogou o argumento fatal. Hadouken:

- Se você não for operado agora, de urgência, vai ter que fazer a cirurgia como eletiva.
- Não há como escapar dela?
- Não. Se há pedras dentro da vesícula é porque ela não está mais funcionando corretamente. Vai ter que tirá-la mais cedo ou mais tarde. E se você fizer uma cirurgia eletiva, vai ter que fazer um risco cardíaco, esperar uma vaga no centro cirúrgico, pedir autorização no plano...
- Onde é que eu assino mesmo? - A burocracia acaba sendo o argumento mais forte para me convencer.

Mando as últimas mensagens de SMS para Wandréa antes da bateria do iPhone acabar.
A enfermeira me indica o caminho da internação e lá vou eu novamente, a pé. Uma nova atendente tira novas cópias de meus documentos, digita hesitantemente no sisteminha do computador e, depois que alguém  mais experiente lhe ajuda, me acompanha até o quarto 137. Ela deve ser novata pois me levou para o lado errado do corredor antes de acertar o caminho até o quarto.

Ligo para Wandréa. Ela não está mais em casa e eu não consigo falar com o celular dela. Peço para a secretária avisar o número do quarto. Logo depois ela surge. Já avisou ao meu pai que está vindo de Friburgo. Ele sempre dá um jeito de estar presente nessas ocasiões. Resolvo tomar um banho. Não há toalhas. Me enxugo com a própria camiseta. O maqueiro surge e me leva para o Centro Cirúrgico.

Nova espera. Parece que estão juntando pacientes aos lotes pois um senhor aparece e, logo depois, uma adolescente acompanhada da mãe, cujo papel deveria ser acalmá-la mas está mais nervosa do que a filha. Estou na sala de operação. Picada no braço. Máscara no rosto. Agora estou no quarto. 

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