Refeição em família



O epílogo de uma refeição em família é a solidão de uma pia cheia de louças sujas aguardando providências. Enquanto o responsável pela cozinha arregaça as mangas para dar conta dela, todos os demais já se isolaram, compenetrados em suas teletelas individuais, com aquela indiferença típica de quem ignora o esforço que as atividades domésticas demandam, eis que completamente alheios a eles e que, exatamente por esta razão, preferem que lhes permaneçam indiferentes. Não há trabalho menos reconhecido que o trabalho doméstico.

Uma vez as crianças pediram para brincar de Spoleto. Brincaram só daquela vez. Quando Márcio deu por si, estava sozinho, comendo macarrão frio. Decidiu que não havia gostado da brincadeira e que nunca mais haveria de entrar nesta roubada de livre e espontânea vontade. Conseguiu se manter fiel à promessa.

Apesar de toda a solidão que sentia diante da louça suja, nunca cogitou abandonar as panelas. Em primeiro lugar, talvez o motivo mais importante, porque cozinhar era uma distração, não uma obrigação. Quando não havia motivação, havia sempre na geladeira as sobras do almoço que a diarista, preparara na véspera. As crianças, com toda a gourmetização de uma geração que não come, degusta, talvez não quisessem encarar a comida requentada no micro-ondas, mas paciência. Achava que pais devem se sentir culpa por muitas coisas, mas a fome dos filhos quando há comida em casa não está entre elas delas. A obrigação deles é dar de comer e não transformar cada refeição numa experiência gastronômica singular. Se cozinhar fosse uma obrigação, certamente Márcio haveria de abominar a tarefa. Se admirava quando escutava alguém dizer que seu maior sonho era trabalhar com algo que gostasse. O mais provável é que quando o hobbie deixasse de ser uma atividade opcional, deixasse também de ser fonte de prazer.

Em segundo lugar porque a solidão da tarefa não era incômodo algum. Muito pelo contrário. Encarava esse momentos infrequentes de instrospecção como uma oportunidade de desfrutar da própria companhia. Márcio gostava de estar em contato com si próprio. A introspecção era tão intrínseca à sua personalidade que talvez explicasse o porquê durante toda a sua vida ter optado, sempre que possível, por atividades individuais. Mesmo na época do colégio, quando se via impelido a jogar futebol, gostava mesmo era de ser goleiro, a mais solitária das posições que existe.

A cozinha não deixa de ser reflexo da personalidade do cozinheiro. No caso de Márcio, isso significava um alto grau de improviso, uma incapacidade de documentar e seguir receitas que estavam sempre em construção, frequentemente voltavam à estaca zero e evoluíam, erraticamente, à base de pitadas de instinto de uma mente desorganizada e caótica. Às vezes simplesmente se esquecia de juntar um ingrediente que em sua mente - e somente nela - havia planejado para a receita. O pote de champignon que deveria estar na panela do picadinho e não na prateleira de dispensa era prova deste tipo de amnésia.

Nem sempre funcionava. Na maior parte das vezes, sim. Quando isso acontecia, comprovado pela voracidade com que um dos filhos em especial encarava o prato à frente, Márcio nem ligava para o epílogo da refeição que lhe aguardava 15 minutos mais tarde.

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