Trabalho dá trabalho

Plagiando a frase de um amigo, não é que eu não esteja pronto para a aposentadoria. Eu já nasci pronto para ela. Meu único receio é em relação à saúde: conseguir manter a sanidade mental durante os 7.291 dias que me separam dela e ter algum resquício de saúde física para gozá-la quando finalmente a contagem regressiva, acrescida de todas mudanças de regras que inevitavelmente ocorrerão, chegar a zero.

Enquanto isso, prevejo que chegará o dia quando me esconderão numa salinha decorada com miniaturas de dinossauros, da mesma forma que fizeram com o pessoal do mainframe. Quando explicarem a um novato qualquer sobre o fluxo de trabalho do departamento, dirão a ele:

- Aí você manda esta requisição ao servidor legado.
- Servidor de legado? O que roda os sistemas Java?
- Não. O servidor legado é o Max Moura Wolosker, ramal 3782. Está completamente obsoleto mas infelizmente, até que sua aposentadoria o desative, ainda temos que mantê-lo no ar.

Às vezes penso em me atualizar. Às vezes penso em mudar de área. Mas aí eu penso no trabalho que vai dar e concluo que posso conviver com a minha própria obsolescência.

Aposentadoria: porque você deu tanto de si próprio à empresa, não sobrou mais nada que possamos usar. (c) Despair.com (http://demotivators.despair.com/demotivational/retirementdemotivator.jpg)

Alguém contou ao meu filho que um homem sem trabalho enlouquece. Sei. Vou conceder um desconto. Um homem sem ocupação morre de tédio, mas uma ocupação não necessariamente tem que estar cadastrada no Cadastro Brasileiro de Ocupações. Correr, por exemplo. Super divertido. Não deixa de ser uma ocupação. Tá no cadastro? De forma alguma. Aliás, o próprio CBO contém ocupações que injetam tédio diretamente na veia. Não consigo imaginar nada mais entediante do que passar 7.291 dias como ascensorista - código 5141-05 do CBO. Ver as reprises dos programas do Luciano Hulk no Canal Viva é consideravelmente mais divertido do que ficar enclausurado por 8 horas diárias, vislumbrando o mundo exterior apenas durante os breves segundos que a porta do elevador se abre no térreo para a troca dos passageiros, sem sequer conseguir escutar uma conversa por inteiro. Não fazer nada já é um ganho enorme na qualidade de vida da pobre criatura que teve a má sorte de ser escolhida para esta profissão.

Às vezes escolhemos. Às vezes as profissões nos escolhem. São aquelas que ninguém mais queria mas estavam disponíveis na hora em que bateu o desespero por uma carteira assinada e um pagamento no final do mês. Uma vez, ainda no Rio, vi um funcionário da Cedae desentupindo uma fossa. Não há outra explicação a não ser a falta de opção que faça alguém se submeter a mergulhar até a cintura numa fossa entupida. Entretanto a necessidade existe e alguém tem que fazê-la.

Fico preocupado quando ouço as pessoas dizerem que trabalho tem que ser divertido. Algo que se faz rotineiramente tende a ser, ao longo do tempo, justamente o oposto disso. Tarcízio, por exemplo. Botão, quero dizer, futebol de mesa. Enjoou. Vinhos. Enjoou. Corrida de rua. Enjoou. Cavaquinho. Enjoou. Se até mesmo dos hobbies que escolhemos enjoamos, como esperar que seja diferente com algo que escolhemos - ou que caiu no nosso colo - séculos atrás, quando ainda éramos imaturos e movidos muito mais pelo idealismo do que pela razão? Que outra razão que não o idealismo levaria um médico a escolher ser intensivista ao invés de dermatologista?

Se trabalho fosse divertido, apresentaríamos nosso cartão de ponto no final do mês e pagaríamos proporcionalmente ao tempo trabalhado. Como nos pagam, há algo intrinsecamente contraditório neste pensamento. Trabalho tem esse nome porque dá trabalho. Se fosse divertido, chamaríamos diversão. Divertido tem que ser  aquilo que fazemos longe do trabalho. Quando compreendi que as horas arrastadas proporcionavam as bicicletas, a guitarra, as viagens, os vinhos e todas as coisas que realmente valem a pena, as horas continuaram se arrastando lentamente, mas ao menos passaram a ter sentido.

Fico perplexo quando descubro alguém que se aposentou e preferiu continuar a trabalhar, mesmo tendo condições financeiras para pendurar as chuteiras definitivamente. Ou de alguém que solicita a "desaposentadoria". Será que seu ambiente familiar é tão ruim a ponto desta pessoa preferir a companhia de seus colegas de trabalho a de seu cônjuge? Será que o trabalho lhe absorveu tanto que ela simplesmente não aprendeu a se divertir? Será que as 8 horas diárias no escritório são as melhores horas de seu dia?

Não será o meu caso daqui a 7.291 dias quando poderei colocar em práticas os dizeres da plaquinha pendurada na parede da casa do Tio Otto: "como é bom não fazer nada e depois descansar".

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