O exílio

Houve uma época que ao andar pelas ruas da cidade, todos os rostos me pareciam familiares. Ainda que não soubesse o nome daquele rosto, tinha a nítida sensação, provavelmente correta, de que já o tinha visto em algum lugar.

À medida que minhas visitas tornaram-se cada vez mais esparsas, a impressão que eu já não conhecia ninguém foi se sedimentando. Andava pelas ruas procurando em vão por rostos familiares. Mas tal como a música cuja letra vai se perdendo na memória, os rostos nas ruas iam se esmaecendo.
 
Hoje, tanto mudamos que não seria surpresa se cruzasse com um rosto outrora familiar sem reconhecê-lo em absoluto. O tempo passa. O tempo sempre passa. Para alguns ele é piedoso. Para outros, nem tanto. O mesmo se aplica às cidades.

Ainda não me sinto um forasteiro. Ando por suas ruas com a destreza de quem sempre viveu por ali. É inegável, porém, que o passar dos anos deixou rugas e a impressão que poderia ter lhe sido mais generoso. A cidade que conheci tinha um certo charme, apesar da pretensão quase arrogante de ser um enclave europeu em pleno trópico. A autodenominada "Suíça Brasileira" olhava por cima das terras que a cercavam como se um infeliz acidente no espaço-tempo tivesse confinado toda uma população de Thurlers,  Tardins, Sangys, Ouverneys, Knusts, Frossards, Boechats, Leimgrubers, Monerats, Wemellingers, Kleins, Herdys, Dafflons, Follys, Baudins, Pinels, Burniers, Jaccouds, Mafforts, Murys, Huguenins e Desbossens em terras brasileiras. Hoje, pouco resta deste charme. A cidade foi se modificando e se tornando banal. Uma cidade como outra qualquer.

O casario que a distinguia já não existe mais. Foi dando lugar, sem qualquer preocupação de manter uma identidade arquitetônica, a construções mais altas ou, o supremo horror, a áridos estacionamentos. Do campo do Friburgo Futebol Clube, somente as arquibancadas testemunham que outrora ali existira um estádio. O apertado gramado no qual a  Associação Médica jogou contra o time dos Artistas da Televisão - quando descobri que o Saci Pererê além de ter duas pernas ainda batia um bolão - e que foi palco do Show do Bozo cuja berrante cabeleira alaranjada mal podia ser distinguida de tão longe o palco tinha sido montado, foi removido. Deu lugar a um chão de terra batida com centenas de vagas delimitadas por cal onde se pode estacionar por (não tão) módicos R$ 4,00 por hora.

Os morros que moldam o vale foram, paulatinamente, mudando de cor. Deixaram de ter o verde da Mata Atlântica residual para se tornarem predominantemente brancos. Impossível passar desapercebida a quantidade de casas empoleiradas sobre eles, avançando ao redor da Pedra do Elefante de tal forma que parecem destinadas a abraçá-lo por completo.
As casas parecem predestinadas a abraçar a Pedra do Elefante

A cidade avançando sobre os morros. Focos de incêndio podem ser observados devido ao clima seco e à falta de civilidade das pessoas.

Os já tradicionais engarrafamentos do Paissandu dão a medida do quanto a Suíça Brasileira abandonou as pretensões de ser uma cidade europeia para se tornar simplesmente brasileira.

A Majórica fechou. A lembrança do galeto com arroz à grega e batatas fritas dos domingos embalados em quentinhas de papel alumínio me fazem salivar como um cão de Pavlov até hoje. Mais pela lembrança do que pelo galeto em si. Era tão somente um galeto de Televisão de Cachorro. Recordo-me da linguiça - que na época ainda não era cancerígena - e do único pão de queijo do couvert, disputado a tapa quando vovô Carlos nos visitava e nos dávamos ao luxo de comer fora. O melhor destas ocasiões é quando nos davam dinheiro para comprar fichas no Pinball, o fliperama vizinho, com o intuito de se livrarem de nós para deixarmos os adultos terminarem de jogar conversa fora em paz.
Churrascaria Majórica já nos seus finalmentes. (Fonte:https://friburgonova.files.wordpress.com/2011/03/dsc00044.jpg?w=984&h=738)

São memórias impregnadas de nostalgia. A nostalgia que surge quando ando pela Praça Getúlio Vargas, ainda que o corte dos eucaliptos centenários denunciem sua decadência, e me faz lamentar os longos períodos de ausência forçada. Me faz questionar se não seria possível abandonar o exílio, como ocorreu com tantos amigos que deram um jeito de voltar.

Sinto falta do aconchego das montanhas que protegem a cidade e que traz uma serenidade tão grande que me pego por horas contemplando-as. Sinto falta do silêncio. Do frio debaixo das cobertas, convite ao sono profundo. Do cheiro da madeira queimada na lareira nas noites de inverno. Do tédio. De reclamar que não se tem nada para fazer nesta droga de cidade. De voltar a pé para casa aos sábados à noite pois o ônibus parava de circular às 23 horas, depois de mais uma noite que não fiquei com ninguém na boite do Country. Vagar pela cidade desperta a nostalgia de quem eu fui. Jovem. Cheio de sonhos. Cheio de certezas.
Sol se pondo atrás do morro.

A mesma nostalgia que me faz recorrer para o La Bamba e seu tradicional - ao menos para mim - canelone real todas as vezes que visito a cidade. Só para constar, o canelone à La Bamba também fazia parte da tradição mas foi abolido do meu cardápio depois que minha religião adotou a postura dogmática e intransigente de proibir o Catupiry na dieta de todos os seus membros.

A mesma nostalgia que me faz subir o teleférico para ver a cidade pelo alto. A mesma nostalgia que me faz subir o Pico do Caledônia mais vezes agora do que quando lá morava. A mesma nostalgia que me faz correr pelo Vale dos Pinheiros, só para passar diante do Park Hotel e despertar a lembrança dos almoços de domingo sobre os pilotis de madeira do hotel cujo destino parece ser o mesmo reservado à casa ao lado do Tiro de Guerra. Ou à casa em frente à antiga Rodoviária. Ou à casa em frente à Praça que deu lugar ao Shopping: o abandono. O esquecimento. A ruína.

Vista da cidade do alto do Pico do Caledônia
Descendo o teleférico
A distância se tornou longa de mais para um simples fim de semana. A Casa da Rua Alpina já não tem suas portas abertas a qualquer momento. Ficou grande demais e foi substituída por outra que, apesar de estar na mesma rua, não é a Casa da Rua Alpina. É somente mais uma casa da Rua Alpina. As visitas continuarão esparsas. O exílio também não será interrompido. Meu ganha pão é incompatível com o perfil econômico da cidade, ainda que eu tenha dificuldade de compreender qual é o perfil econômico atual da cidade. Só nostalgia permanecerá. A nostalgia que vem à tona toda a vez que vejo a placa verde no topo da serra informando: "Altitude 1079m".
Casa da Rua Alpina, versão 1.0

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