Dona Joana



Histórias da tradição oral estão no campo das lendas, onde a veracidade dos fatos não pode ser atestada. Assim ocorre com a história destes personagens. Não há registros formais. Apenas a transmissão das palavras de boca em boca, transformadas a cada iteração, até se chegar a um enredo que, embora possa ser mais interessante do que a história real, também pode estar completamente dissociado do que convencionamos chamar de verdade. Às vezes, a moradia em Brasília pode se tornar efêmera. Os que vêm não vêem a hora de voltar para os lugares que nunca deixaram de considerar seus lares. Poucos vêm para cá achando que a cidade é uma etapa definitiva em suas vidas. O conhecimento da trajetória das quadras e de seus personagens acaba restrita a poucas pessoas que acidentalmente ficaram raízes e tiveram o privilégio - ou não - de vê-las se modificando ao longo do tempo. Na minha quadra, os detentores da tradição oral são os porteiros e Seu João, que às terças e sextas vende frutas e verduras frescas desde que a quadra é quadra. Apesar de achar que os projetistas de Brasília tinham opinião diferente, cidades são entidades orgânicas que evoluem ao longo do tempo, nem sempre na direção imaginada. As comerciais de Brasília foram projetadas para abrigar um comércio diversificado que atendesse às necessidades dos moradores das quadras que lhes cercam. Imaginava-se que a entrada principal ficaria voltada para o interior das quadras e os fundos, para as ruas. A realidade, no entanto, mostrou uma evolução diferente. Em alguns casos, a cidade evoluiu naturalmente para uma setorização. Sem exceção, a face dos estabelecimentos comerciais voltada para o interior das quadras é de uma feiura deprimente e a entrada principal se dá pelas ruas, onde o excesso de veículos combinada com a falta de vagas e de educação dos motoristas resulta numa eterna fila dupla. A nostalgia que habita a todos nós raramente enxerga transformações como positivas. Me deprime ver os morros cobertos de verde da minha infância encobertos por prédios de concreto. Imagino que deve ser a mesma sensação das pessoas acostumadas a ver crianças correndo livremente pelas superquadras que, agora, têm que se acostumar ao deserto que elas se tornaram quando a sensação de insegurança e o aperfeiçoamento dos videogames confinou as crianças irremediavelmente no interior dos apartamentos.

Quem me contou sobre ele foi Seu João. O encontrava frequentemente nas minhas corridas matinais. Hoje, raramente o vejo. Não sei se as corridas ficaram mais escassas ou se ele simplesmente está para outras bandas e só aparece de vez em quando para matar as saudades do lugar. Sempre o cumprimentava e tinha a impressão que ele ficava genuinamente surpreso por ter tido sua invisibilidade revogada. Servidor do Ibama, foi aposentado por invalidez. Conta-se que a família fica com seu benefício mas que não que faz diferença. Gosta da vida nas ruas. Um dia o assustei ao me aproximar correndo às 6 da manhã. Neste horário, ou é assalto ou é assombração. Se bem que me lembro de correr em horários mais estranhos. Quando a poeira das ruínas de meu casamento anterior ainda turvava a visão, não eram raras as noites de insônia preenchidas por trotes noturnos. Lembro-me de ter passado correndo pelo Frederic Chopin às duas da madruga. Os frequentadores já estavam turbinados no álcool mas quem estava doidão era eu. Fim de relacionamento é assim mesmo. Não conheço ninguém que tenha saído incólume de um. Traumático a ponto da gente se promete que nunca mais vai cometer a mesma loucura. Só para se pegar cometendo as mesmas loucuras novamente. Ainda bem que há esperança. Ele não faz mal a ninguém. De vez em quando exagera na cachaça barata, quando isso acontece, adormece debaixo de um bloco qualquer à espera que a sobriedade volte acompanhada na inevitável ressaca que acomete mesmo aqueles que desenvolveram resistência ao álcool.

Não é o único a frequentar a vizinhança. Circulando pelos limites da Asa Sul, vaga uma mulher de cabelos brancos sempre trajando um vestido longo negro sobre uma blusa branca de mangas compridas. Seu nome é Joana. Joana Barbosa de Souza e possui um currículo invejável e improvável a uma moradora de rua. Graduada em Agronomia. Cursou Jornalismo na Argentina. Foi professora de música. Chegou a Brasília no início dos anos 2000 e aqui fixou residência. Seus limites estendem-se, de ambos os lados do Eixão, do Setor de Autarquias Sul às Quadras 10. Sua morte chegou a ser noticiada em 2012 mas era apenas um boato. Havia sido atropelada e uma temporada no Hospital de Base foi suficiente para lhe consolidar as fraturas e devolvê-la às ruas com poucas sequelas visíveis além do corte de cabelo mais rente. Depois deste incidente, foi levada de volta à sua cidade natal, Catu, a poucos quilômetros de Salvador mas não se readaptou. Tão logo se viu recuperada, voltou ao seu lar: as ruas da Asa Sul. Tive alguns contatos com ela. Uma vez enquanto pagava o almoço no Frasson, um restaurante a quilo que ficava perto do trabalho. Ela me disse que tinha sede e me perguntou se não podia lhe pagar uma garrafa d'água. Pedi à caixa que incluísse na conta e ela perguntou, à Dona Joana, se era com ou sem gás. Depois de um instante de indecisão, aceitou a água com gás, agradeceu e foi embora. A caixa disse que, de vez em quando, mudava de opinião e pedia a troca, gerando um certo transtorno já que as bolinhas da água com gás agregam valor ao preço final da mercadoria. Pelo que li, ela pede somente o que realmente precisa. Se pede R$ 1,00 e lhe oferecem R$ 2,00, não aceita.

Às vezes, a vejo em frente à sede da Polícia Federal, aquele prédio de janelas escuras que sempre aparece no Jornal Nacional quando alguma operação de nome impactante é lançada ou quando algum figurão se esforça além da conta e faz tanta merda que uma temporada na prisão acaba sendo inevitável. Ela lê um livro em voz alta, como se estivesse lançando um encantamento contra o prédio. A vi desempenhando este ritual quando voltava do trabalho. Busquei a câmera para tirar algumas fotografias mas não quis interrompê-la. Não pedi permissão e simplesmente saí fotografando. Seus pertences estavam arrumados em cima da plataforma que sustenta os mastros das bandeiras tão comuns às instituições públicas. A princípio, fingiu me ignorar apesar de não disfarçar o incômodo com minha presença. Por fim, me pediu com uma voz suave: "Não tira foto não. Por favor. Estou lendo". Abaixei a câmera e fiquei observando por um longo tempo, enquanto ela retomava a leitura do "Ato dos Apóstolos". Queria trocar algumas palavras, fazer algumas perguntas, decifrar um pouco do enigma que ela representa. Infelizmente, os apóstolos cometeram muitos atos e o livro é grande. Acabei voltando pra casa sem conversar com ela. Não que fosse fazer alguma diferença. Pelo que pesquisei mais tarde nos blogs que fazem referência a ela, Dona Joana costuma ser arredia com quem quer saber de sua vida pessoal.

Ela me trás à lembrança uma música de Lupicínio Rodrigues, Maria Rosa. "Nos trapos de sua veste, não é só necessidade, cada um representa para ela uma saudade". Só que ela não veste trapos. Usa vestidos costurados por suas próprias mãos, usando as doação dos comerciantes das lojas
de tecidos da "Rua dos Tecidos", na 306/307 Sul. Nada mais justo já que localizadas dentro de seus domínios, lhe devem tributos. Ninguém sabe ao certo o que a trouxe à Brasília. Muito menos o que a fez estabelecer seu reinado na Asa Sul. Especula-se que tenha sido uma decepção amorosa tal como a Maria Rosa de Lupicínio Rodrigues. Não gosto da ideia. Clichê demais. Uma personagem tão fascinante merece uma história à altura.

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