Aisha


– Tira a porra desse véu! Tu tá no meu país! Tem que respeitar os meus costumes!

Aisha não compreendeu o que aquele homem estava dizendo. Compreendia, porém, que o que saía dos olhos daquele homem como raios flamejantes era ódio, um ódio puro, ódio em seu estado mais primitivo. Certamente, não era o tipo de boas vindas que ela havia esperado sobretudo depois de ter ouvido a sua vida inteira sobre a cordialidade do povo brasileiro. Talvez houvesse outro significado para cordialidade porque aquele comportamento passava longe de qualquer definição de gentileza.

– Você é surda? Tira a porra desse véu!

Ainda sem compreender o que o homem dizia, Aisha recuou atônita ao perceber que o homem avançava em direção ao hijab que cobria seus cabelos. “Então é isso”, pensou. É meu véu… é porque sou muçulmana.

Uma pequena multidão começou a se formar ao redor de Aisha e do homem. As pessoas observavam a cena com curiosidade e se inclinavam umas em direção às outras para comentar o incidente com aquela postura característica de quem se acha no dever, mais do que no direito, de palpitar sobre tudo e sobre todos. Isso deu um certo alento a Aisha. Alguém haveria de intervir a seu favor e dar um fim àquela situação completamente descabida.

Com um puxão, o homem arrancou seu véu, deixando à mostra seus longos e lisos cabelos pretos. Mais do que a dor dos cabelos sendo puxados juntos com o véu, a dor que Aisha realmente sentiu foi a dor de ter sido violentada, a dor de ter tido uma parte de seu corpo exposta à vista de todos contra a sua vontade. O homem jogou o hijab de um verde bem claro no chão, mas não se deu por satisfeito. Encarou-a com um ar de satisfação e após um breve momento, voltou à carga:

– E essa bolsa aí? O que tem nela? Uma bomba?

Essa última palavra soou familiar à Aisha. Embora não compreendesse o português que lhe vinha sendo raivosamente cuspido no rosto, Aisha falava inglês muito bem. Pareceu-lhe ter escutado o homem dizer algo parecido com “bomb”. Sentiu o sangue ferver, o pico de adrenalina causar-lhe pontadas em suas têmporas. “Claro… como toda boa muçulmana eu tenho que ter uma inclinação ao terrorismo”.

As palavras do homem tiveram efeito sobre a fisionomia das pessoas ao redor que recuaram alguns passos com uma expressão, senão de pânico, de dúvida e cautela. Sentiu-se arrependida de ter deixado seu marido dormindo no hotel mas, ei, não lhe tinham assegurado que as mulheres podiam andar sem receio pelas ruas do país escolhido para sua lua de mel? Decidida a dar um fim naquela situação que já tinha ido longe demais, abriu a bolsa para pegar o celular e ligar para seu marido em busca de ajuda. Nisso, a multidão emitiu um ruído de terror:

– Ela vai explodir! – o homem que a confrontava gritou.

Aisha reparou que algumas pessoas se afastaram em pânico. O homem se adiantou novamente em sua direção e com um puxão firme, arrancou-lhe a bolsa das mãos. “Inglês… alguém aqui deve falar inglês… é uma cidade turística, afinal”.

– Please… anybody help me, please… – suplicou.

Alguém na multidão comentou:

– Ó… é terrorista mesmo… tá até falando árabe…

Aisha não percebeu de onde veio a primeira paulada. Sentiu as pernas vacilarem. Sentiu um fio morno escorrendo pelo rosto. Percebeu os celulares apontados em sua direção, registrando sua perplexidade em lives do Facebook e stories de Instagram. Olhou para baixo e viu os pontos que tingiam de vermelho o chão acinzentado de concreto.

O primeiro golpe serviu como uma espécie de senha que autorizou a multidão a avançar e atingi-la com punhos, pedras e paus. Aisha percebeu que ia morrer.

– Allahu akbar – murmurou enquanto recebia os golpes e tentava, num último e inútil esforço, manter-se consciente e de pé. Naquele fim de tarde, a muçulmana realmente explodiu. O que se detonou, no entanto, não foram explosivos amarrados em torno de seu ventre, mas as próprias vísceras no interior desse ventre. Vez ou outra, ainda é possível ver nas redes sociais, o rosto disforme, ensanguentado e desorientado de Aisha, enquanto homens e mulheres de bem, como numa espécie de catarse, exerciam aquilo que de mais característico lhes é: seu ódio à diferença.

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