O venezuelano hipotético

Caminhão de ossos' no Rio é disputado por população com fome - 29/09/2021


Todo bolsominion tem seu venezuelano hipotético. Nem sempre foi assim: outras nacionalidades já assumiram esse personagem. O cubano, por exemplo, já esteve no topo das paradas de sucesso, mas por algum motivo inexplicado, saiu de moda. Se fôssemos buscar algum motivo lógico talvez chegássemos à conclusão que recentemente a expectativa de vida em Cuba superou à dos Estados Unidos, o país modelo dos bolsominions, e há muito tempo supera em muito à do brasileiro, mas a única conclusão que chegaríamos é a de que o bolsominion é imune à lógica. Confrontado com este fato, ele simplesmente diria que a fonte das estatísticas de saúde em Cuba é o Governo Cubano e que, por isso, os dados são manipulados. Não deixa de ser irônico ouvir esse tipo de alegação quando a gente lembra que durante a pandemia o Governo Brasileiro tentou divulgar o número de curados como uma prova de sucesso da política de combate ao covid e que os órgãos de imprensa precisaram formar um consórcio para consolidar o número de mortos porque o Ministério da Saúde tentou sonegar esses dados. De uma perspectiva histórica, a censura dos números relativos à epidemia de meningite pela Ditadura foi prática comum nos anos 1970, o que nos leva a concluir que os militares são muito bons de combater doenças combatendo números. Da mesma forma que se não houver investigação não há corrupção (um salve pro Aras), se não houver doentes não há doença. Simples assim: um manda o outro obedece.

As menções aos cubanos rarearam, ficando na prática restritas ao financiamento do Porto de Mariel e, embora os argentinos estejam despontado como a próxima tendência, o venezuelano ainda é o hit do momento. Quem nunca conversou com um bolsominion e escutou que o Brasil vai virar a Venezuela, que o brasileiro vai ter que catar comida no lixo e que em Caracas as pessoas chegaram comem o próprio cachorro? Quando as imagens dos ianomamis morrendo de desnutrição, que mais pareciam as imagens de prisioneiros sendo libertados de campos de concentração passaram a rodar o país, o argumento é que eles estão passando fome porque são índios venezuelanos. E aí, não adianta apresentar dados que a insegurança alimentar no Brasil é maior do que na Venezuela, mesmo porque os dados são da ONU e todo o mundo sabe que a ONU é uma organização de esquerda. Ainda que o bolsominion aceitasse a ONU como uma fonte de dados confiável, ele continuaria a repetir o mantra que o Brasil vai virar uma Venezuela e a minha hipótese sobre isso é a que se segue:

Primeiro de tudo, há o componente Safatle: "nós não vivemos no mesmo país, nós apenas ocupamos o mesmo espaço — por infelicidade". Se você mostrar as imagens da fila do osso e argumentar que já há pessoas que passam fome no Brasil e que procuram comida no lixo, o bolsominion vai varrer esse argumento para um canto bem escuro de seu inconsciente e continuar a argumentar que o Brasil vai virar uma Venezuela e que as pessoas vão começar a catar comida no lixo. Isso porque se por um lado o Bolsominion se enxerga como um representante médio do brasileiro, por outro as pessoas na fila do osso vivem uma realidade tão distante da sua que, na prática, é como se vivessem em outro país - na Venezuela, talvez, o que seria até muito conveniente porque, desta forma, a culpa das pessoas passarem fome é do socialismo e não do chefe do executivo naquele momento - Bolsonaro, no caso.

O segundo deles é a admissão implícita que a existência de ricos e pobres num país tão desigual como o Brasil está intrinsicamente ligada: a existência de ricos pressupõe que haja pobres e vice-versa; e que uma divisão de riquezas num patamar de justiça minimamente razoável acabaria por aproximar todos da parte mais numerosa da população - a classe pobre. Desta forma, se a sociedade brasileira tivesse uma divisão de renda e riqueza mais igualitária, seríamos - pelos padrões de consumo do bolsominion - todos igualmente miseráveis. O real medo do bolsominion não é que o Brasil se torne uma Venezuela, mas que ele, o bolsominion, se torne um brasileiro o que, na prática, é o mesmo que se tornar um venezuelano.

Sendo justo, toda a corrente política acaba caindo no reducionismo de algum personagem hipotético: a esquerda volta e meia usa a cartada do pobre hipotético, que ela julga representar, e a direita volta e meia usa a do empresário/investidor hipotético que ela julga ser. A diferença é que tanto a esquerda quanto a direita usam a cartada das classes cujos interesses defendem: a esquerda quer que o pobre seja menos pobre e a direita quer que o rico seja mais rico. O Bolsonarismo usa esse tipo de argumento não porque ele defende o interesse do venezuelano, muito pelo contrário. Ele utiliza a cartada como um espantalho com o objetivo de incutir o pânico generalizado. No Bolsonarismo, a discussão é mais importante do que o assunto que está sendo discutido pois assim  se consegue manter a polarização que perpetua a narrativa do nós contra eles, fundamental em qualquer tipo de movimento autoritário, especialmente nos de cunho fascista.

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