Expectativas

Outro dia resolvi dar um basta. Criança tem que dormir na cama dela. Qualquer criança. Aproveitei que às noites de domingo estou sozinho com as crianças e, como qualquer tirano que se preze, decretei:

- Hoje Biel vai dormir na cama dele!

Por duas vezes naquela noite ele entrou no quarto sendo prontamente mandado de volta ao seu quarto:

- Hoje Biel vai dormir na cama dele!

No dia seguinte, na hora de dormir, Biel quis sair para dormir no quarto da babá. Quando o proibi, ele se jogou no chão, começou a chorar, a gritar por socorro mas fiquei com ele no quarto, observando sem intervir, até que ele pareceu ceder e deitou-se na sua cama. Uns 10 minutos depois, ele saiu do quarto a toda, contando que ninguém perceberia. Para sua decepção, eu estava no corredor

- Perdeu, playboy. É nóis. De volta pro quarto.

Imagina a decepção estampada no seu rosto.

Na quarta-feira ele já dormia na sua cama sem esboçar qualquer tipo de reclamação. Foi o típico caso em que um grande aborrecimento à vista saiu muito mais barato do que longas parcelas de aborrecimento.

Depois deste episódio, fiquei com a impressão que o diagnóstico de autismo de Biel nos fez baixar ao mínimo as nossas expectativas em relação às suas capacidades de aprendizado e ao seu comportamento. Deixamos que ele se comporte de uma forma que não aceitaríamos em outra criança pois temos uma percepção maior de suas limitações do que elas realmente são. Deixam de ser as suas limitações para serem as limitações que enxergamos nele.

O fato dele ter fingido dormir, esperar que nos recolhêssemos para só então sair do quarto mostra um grau de recursos maior do que normalmente esperaríamos de um autista. Mostra uma dose de paciência e planejamento muito maior do que normalmente se atribui a uma criança autista, cuja capacidade de frustração é tida como menor e praticamente incontrolável. O seu diagnóstico faz com que vejamos muito mais "o autista Gabriel" do que "o menino Gabriel", como se o autismo fosse algo absoluto e não inserido em um espectro que varia imensamente de uma pessoa para outra, da mesma forma como o comportamento e as capacidades das pessoas tidas como "normais" varia altamente de indivíduo para indivíduo. Fiquei com a impressão que muitas vezes assumimos suas limitações como incapacidades e, involuntariamente, acabamos tornando-o incapaz. Ele era incapaz de dormir sozinho, como um menino de sua idade, porque o julgávamos incapaz de fazê-lo.

Quando o desenvolvimento de uma pessoa está sob nossa responsabilidade, temos que ser cuidadosos em relação às expectativas que nela depositamos. Assim como não podemos criar expectativas extremamente altas, temos que resistir à tentação de criar expectativas excessivamente baixas. No primeiro caso, vamos nos frustrar. No segundo, perdemos a oportunidade de extrair o seu verdadeiro potencial. Temos que ter expectativas adequadas à sua realidade e trabalharmos para que elas se concretizem.

Na semana seguinte, resolvi dar um basta. Criança não pode ficar andando de cuecas pela casa. Qualquer criança. Aproveitei que às noites de domingo estou sozinho com as crianças e, como qualquer tirano que se preze, decretei:

- Gabriel não pode mais ficar andando de cuecas pela casa. Pedro não anda de cuecas, Max não anda de cuecas, mamãe não anda de cuecas, Dayane não anda de cuecas. Então, Biel para sair do quarto dele tem que usar short.

Ele esperneou, chorou, se jogou no chão. Quando a fome apertou ele apareceu na cozinha de short. Desde então, ele veste short em casa como qualquer criança de sua idade.

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