Feridas Abertas

O vulto do morador de rua que dormia junto à parede do restaurante quando chegamos passou de relance pela janela às costas de nossa mesa. Tínhamos passado apressados por ele, tentando nos convencer que quanto menos presenciássemos aquela triste imagem, maior seriam as chance que ela não fosse real. Ainda assim, as feridas abertas que cobriam boa parte do seu corpo, inclusive o seu rosto, eram evidentes demais para passarem desapercebidas tanto a nós quanto às moscas que nelas pousavam sem serem incomodadas. De vez em quando, algum desentendimento entre os moradores de rua que vigiam os carros dos clientes do supermercado culmina em agressão. Nestas ocasiões, os objetos à mão são subvertidos em armas. Um carrinho de supermercado pode ser atirado em direção ao oponente. Um facão pode ser usado como instrumento de intimidação. O que era inegável é que as feridas tinham sido adquiridas às custas da vida na rua. Passamos novamente por ele na volta. Ele retornara para o mesmo local, devorando a quentinha de alumínio conseguida em algum restaurante da vizinhança. Deve haver lugares piores para ser indigente do que a "Rua dos Restaurantes", fenômeno curioso e próprio de Brasília, onde uma setorização não planejada resultou em curiosas ruas temáticas. "Rua da Informática". "Rua das Elétricas". "Rua da Moda". A minha preferida é a "Rua da Farmácia", estrategicamente localizada em frente ao Hospital de Base de Brasília.

O primeiro presidente civil depois de 30 anos de ditadura militar tinha sido internado neste hospital, no dia em que finalmente viraríamos a página daquela história de erros. Eu tinha 12 anos e acompanhava a ilusão dos adultos que esperavam, ansiosamente, à chegada messiânica da democracia. Quando a ditadura caísse, todos os nossos problemas estariam resolvidos. Quando percebemos a ditadura tinha ido embora mas nossos problemas não, passamos a acreditar que quando uma nova Constituição fosse aprovada, todos os nossos problemas estariam resolvidos. A cada decepção, um novo evento era escolhido como o marco da nossa virada. Quando o Botafogo fosse campeão, todos os nossos problemas estariam resolvidos. Quando elegêssemos diretamente um presidente da república, todos os nosso problemas estariam resolvidos. Quando derrotássemos a inflação, todos os nossos problemas estariam resolvidos. Quando elegêssemos um presidente vindo do povo, todos os nossos problemas estariam resolvidos. Quase 3 décadas depois, cada marco estabelecido foi superado. Nossos problemas não. Base me remetia à uma instalação militar. Devia ser o hospital da base do país. Meu conhecimento sobre o Distrito Federal limitava-se às externas do Congresso no Jornal Nacional e às músicas do Legião Urbana. Naquela época presidentes da república ainda eram atendidos em hospitais públicos. Não era como hoje em dia em que até os servidores da Secretaria de Saúde têm plano de saúde para se tratar em hospitais particulares. Tancredo morreu. Durante seu calvário, que se tornou o nosso, uma criança caiu do 7º andar do hospital. Sobreviveu. Foi o que bastou para que algum gaiato espalhasse que aquela era a única maneira de sair vivo do Base.  Entre drogarias de manipulação, homeopáticas e aquelas que vendem medicamentos que comprovadamente funcionam, contei 30 estabelecimentos do gênero em 500 metros de rua. Apesar de ficar próxima a dois hospitais, há que se levar em consideração que são hospitais públicos, cujos usuários só compram medicamentos nas farmácias quando o GDF deixa de abastecer as suas próprias, deixando a população na mão. Infelizmente, deixar a população na mão parece ter se tornado a especialidade do GDF neste lacônico fim de governo.

Moradores de rua despertam minha curiosidade. Talvez trate-se de um fetiche, da mesma forma como a popularização de selfies com moradores de rua como plano de fundo ou turistas estrangeiros subindo as favelas ditas pacificadas do Rio de Janeiro, em busca de uma miséria exótica que não existe em suas terras natais. Qual era a vida que levavam antes de serem reduzidos à invisibilidade da indigência? Somos nosso trabalho. Somos nossa casa. As pessoas que não têm trabalho ou teto, tornam-se invisíveis, lembrados apenas quando são consumidos pelas chamas. "Pensamos que fosse um mendigo", disseram os rapazes que atearam fogo no Índio Galdino, como se queimar um morador de rua fosse legítimo. De certa forma, os invejo. Invejo a liberdade. A liberdade de no dia seguinte estar a um dia de caminhada do dia anterior. É claro que há o preço e este, ninguém está disposto a pagar voluntariamente. Abrir mão de bens materiais e todo o seu significado que transcendem ao uso puro e simples. Bens são felicidade, ainda que efêmera. Felicidade que dura uma o tempo que nossa cobiça leva para lançar seus olhos em outra direção. O ciclo só se rompe quando nossa consciência se apaga definitivamente. Libertar-se significa deixar de lado a falsa sensação de segurança representada por condomínios fechados, vigias noturnos, cercas elétricas e chaves de 4 voltas. Libertar-se significa deixar de lado nossa identidade. Não somos as pessoas que somos e sim os feitos, as conquistas e os fracassos que acumulamos ao longo de nossa breve história.

Quando volto ao Rio de Janeiro, me emociono com sua beleza. O curioso é que ela me era indiferente quando eu lá morava. Os obstáculos escondem as recompensas do dia a dia. O Cristo Redentor sobre o Morro do Corcovado se torna invisível diante do engarrafamento na entrada do Túnel Rebouças. Desconfio que assim também seja com a liberdade que finjo invejar. Os moradores de rua não se tornam nômades em busca de novos lugares e de novas experiências. Fixam ponto da mesma forma como fixamos residência. Quem sente fome, frio ou busca abrigo da chuva não pode se dar ao luxo de sair pelo mundo colecionando pores do sol. Há necessidades mais básicas e mais urgentes a serem resolvidas que tornam deixam o exercício dos sentidos num distante segundo plano.

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