Retratos de um dia 13

Nosso passado não nos é caro. Fosse uma litografia de Rembrandt ou uma pintura de Van Gogh, haveria milhares de reproduções em alta definição na internet. Como se trata de uma obra retratando um cotidiano local, sua presença na internet é praticamente nula. Mas achei. Não está em alta resolução, as letras invertidas denunciam tratar-se de uma imagem escaneada de um livro, mas servirá.

Outra imagem ganhou destaque ontem. Uma foto. Fosse de um fotógrafo americano, seria forte candidata a um Pulitzer.

 

A gravura de Debret, "Um funcionário a passeio com sua família". A foto de João Valadares, sem título. Lado a lado, mostram que as coisas não evoluíram tanto assim do Brasil Império para o Brasil que se pretende moderno. A foto circulou à exaustão pelas redes sociais, o retratado veio a público rebater as críticas. A babá lhe é muito estimada, trabalha apenas nos fins de semana, está com seus direitos trabalhistas em dia e esbanja dignidade em seu uniforme branco. Se ela se sentir incomodada com a ocupação, é livre para pedir demissão e procurar outro empregador. Massa.

A argumentação veio acompanhada da constatação que ele havia sido vice-presidente da Brasif, a mesma empresa que ironicamente, está sendo acusada de dar mesada à Miriam Dutra, jornalista com quem o ex-presidente FHC achava que tinha um filho. Irônico porém não surpreendente. A confusão entre o público e o privado não foi inaugurado pelo PT conforme nos quer fazer crer o MBL. O favorzão que Pero Vaz de Caminha pediu à Vossa Alteza, El Rei Dom Manuel, que lhe trouxesse de volta seu genro, Jorge Osório, degredado nas Ilhas de São Tomé, já na Carta do Descobrimento, é a prova cabal que a prática está entranhada nestas terras desde nossa gênese.

Do ponto de vista legal, não há nada de errado com a imagem. Com ambas. No Brasil, o trabalho escravo era regulamentado até 65 anos após Debret ter retratado a cena. No Brasil, o trabalho doméstico está regulamentado desde que a CLT foi promulgada, ainda no Estado Novo de Getúlio. Saliente-se que, assim como a escravidão brasileira foi sendo desconstruída lentamente no século XIX, protelada enquanto se pôde, os direitos trabalhistas dos empregados domésticos veio sendo construído lentamente nos séculos XX e XXI, protelados enquanto se pôde.

Assim como os trabalhadores rurais ficaram à margem da CLT para evitar confrontos com a elite rural quando de sua criação - a urbanização brasileira é recente e, à época, a maioria da população vivia e estava empregada no campo -, também à margem da legislação ficaram os trabalhadores domésticos. Ambas as categorias eram - e são - vistas como destinadas a trabalhadores de pouca qualificação, merecedores de pouca consideração. Os verdadeiros trabalhadores, aqueles para quem a (então) moderna legislação havia sido escrita, não eram os descendentes de escravos. Eram os imigrantes europeus.

Devemos fugir da dicotomia entre o bom e o mau. Se somos considerados bons é porque, a despeito de nossas eventuais más ações, nosso comportamento é visto, na maior parte das vezes, como adequado. O mesmo se aplica àqueles considerados maus. Ninguém é absolutamente mau. Ninguém é absolutamente bom. Extrapolando, o mesmo se aplica à instituições. O mesmo se aplica a governos. A elevação da categoria dos trabalhadores domésticos à uma categoria profissional com direitos plenos deve-se ao governo Dilma e, por extensão, ao governo do PT, por pior que ele tenha sido nos campos político, econômico e moral. Foi somente no ano passado que o FGTS foi estendido a eles e, por mais pertinente que seja discutir se o direito de emprestar dinheiro ao governo a taxas de juros abaixo da inflação é realmente um direito, também é pertinente reconhecer que foi somente em 2015 que houve a elevação dos trabalhadores domésticos ao emprego. Até então, eles eram institucionalmente submetidos ao subemprego.

Fui cara pintada. Como virtualmente todos os estudantes da época. Me descobri massa de manobra. Como virtualmente todos os que são induzidos a participar de protestos com algum tipo de organização central. Legítimos são os protestos que nascem sem que saibamos exatamente como. Legítimos foram as jornadas de junho de 2013. Legítimos foram os rolezinhos nos shoppings. Legítimos eis que frutos de uma insatisfação espontânea. Esses enchiam de esperança que novos tempos estavam sendo anunciados.

Os novos tempos não chegaram. Novos tempos nunca chegarão. Novos tempos não chegam. Novos tempos são construídos. Novos tempos não são construídos a partir de soluções fáceis e simplistas.

Pode-se contar com várias coisas na vida. Com a morte. Com os impostos. Com a seca no nordeste. Pode-se contar que haverá uma morte de algum ponto fora da curva. Alguém cuja vida tem valor. Alguém que não é considerado descartável. Um pai de família classe média alta. Descobre-se, então, que se morre de morte matada no Brasil. Pior, descobre-se que a morte está mais perto do que se costuma pensar. Descobre-se, então, que a PM estava em Operação Tartaruga há 3 meses. Ignora-se que no entorno, onde as vidas são descartáveis, morre-se de morte matada todos os dias. Surge a comoção. As pessoas se mobilizam. Vestem-se de branco e saem às ruas para protestar contra a epidemia de violência que assola o país. Cai o secretário de segurança pública. As viaturas policiais voltam a exceder o limite de velocidade das vias para atender as ocorrências. As pessoas podem voltar para casa para dormir o sono dos justos. Fizeram sua parte.

Não fizeram nada. Muito pelo contrário. Ao dar a falsa impressão de ação, a mobilização desmobiliza para o que realmente poderia fazer a diferença.

Dia 13, todos na rua contra o PT e a corrupção. PT e corrupção são tratados como sinônimos. Vamos tirar o PT e tudo magicamente se resolverá. Fácil. Simplista. Inócuo. Das mesmas pessoas que recebo convites para participar das manifestações, recebo queixas do absurdo que são os radares escondidos. Recebo anúncios de sprays reflexivos para enganar os flashes dos pardais. Recebo este vídeo como sendo uma ação legítima. Uma ação heroica.


Vamos combinar que, para nós brasileiros, a impunidade só é um problema na medida que os impunes são os outros. Novos tempos serão feitos sob a ótica deste "cidadão", compartilhada por tantos outros "cidadãos"?

Reduzir nossos problemas ao PT é fácil mas não é realista. Os problemas do PT ficarem evidentes a partir do momento em que a corrente pragmática prevaleceu e a aliança com PMDB, em nome da governabilidade, se consolidou. Tira-se a Dilma, assume o Temer. Tira-se o Temer, assume o Eduardo Cunha. Tira-se o Eduardo Cunha assume o Renan Calheiros. Tira-se o PT, assume o PMDB.

Se no momento parece difícil achar alguma qualidade na nossa presidenta, não se pode deixar de reconhecer a veracidade de um de seus argumentos: seu Fiat Elba não existe. Ainda. Talvez venha  a aparecer. Por outro lado, sua linha de sucessão que está completamente contaminada por casos concretos de Fiat Elbas. É na mão do Michel Temer que vamos entregar a condução do país até 2019? Alguém acredita nas boas intenções do Eduardo Cunha?

O governo não é do PT. Há 14 anos, o governo é uma associação entre PT e PMDB. Quebrá-la para dar o governo à outra metade da coalizão não resolverá nossos problemas. No máximo, servirá como um amaciador de travesseiro. Dormiremos o sono dos justos. Fizemos nossa parte. Poderemos nos desmobilizar e continuar a estacionar em fila dupla. A reduzir a velocidade debaixo do pardal. A fazer o enxoval em Miami e pegar a fila de nada a declarar na alfândega. A apresentar atestados médicos no trabalho e recibos pro Imposto de Renda. Pouco importa se falsos. Afinal de contas, corruptos são os outros. Corrupto é o PT.


De todos os argumentos que podemos usar para aliviar nossa culpa, a inocência não e um deles. Assim como a eleição da Dilma pode ser vista como um referendo à condução econômica do segundo mandato do Lula, sua reeleição deve ser entendida como um referendo à condução econômica de seu primeiro mandato. Se ela nos levou ao atoleiro que nos encontramos, fomos todos responsáveis. Falhamos todos. Falhou a Dilma. Falhou o PT. Mas também falhou a oposição, que só conseguiu apontar que nos dirigíamos para o abismo quando já estávamos à beira do precipício. Falhou a oposição por não conseguir apresentar um nome que fosse percebido como uma alternativa. Falhou a oposição por não conseguir apresentar uma alternativa ao modelo econômico vigente. Falhou a oposição por não conseguir apresentar uma alternativa ao modelo político vigente. Falha a oposição ao apresentar o impeachment como uma alternativa em si. É a solução fácil. A esta altura, parece inevitável.

Soluções fáceis raramente são eficazes. Amadurecemos quando somos obrigados a arcar com a responsabilidade de nossos atos. É assim que as crianças aprendem. É assim que deveríamos aprender. Dilma assumiu seu segundo mandato como consequência de nossas ações. Ela não se nomeou. Nós a elegemos. Pouco importa as alegações de votos em Aécio. Democracia pressupõe que todos devem assumir a responsabilidade pelo resultado, até mesmo a parcela da população que se viu derrotada. Deveríamos amargar os anos restantes para cravar na alma de nossa democracia a experiência do acontece quando votamos com o descompromisso que nos é característico.

A responsabilidade de transformar o Brasil, nos pequenos atos, nunca é nossa. É sempre de terceiros. Nunca nos vimos como os autores de nossa própria historia. Somos apenas espectadores. Somos sempre passivos. É por isso que desde os primórdios de nossa democracia, marcado pela adoção do voto secreto na década de 40, nossa história é prodigiosa em criar bodes expiatórios. JK. Jango. Governo Militar. Sarney. Dilma. Também somos muito bons em eleger salvadores da pátria. Jânio. FHC. Lula. Às vezes, transformamos nossos salvadores em nossos bodes expiatórios. Collor. Temos a ilusão que basta tirar os bodes expiatórios para resolvermos nossos problemas instantaneamente.

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