A migração e o bovarismo brasileiro

(Publicado originalmente no Medium

Nenhum fenômeno pode explicar melhor a relação que o brasileiro tem com sua autoimagem do que o bovarismo. Em termos psicológicos, essa patologia consiste em uma alteração do sentido da realidade, na qual uma pessoa possui uma deturpada autoimagem, e se considera outra (de características grandiosas e admiráveis) que não é. Podemos encarar a retirada do Brasil do Pacto Global de Migração da ONU como uma confirmação do diagnóstico, uma demonstração que estamos constantemente nos iludindo em relação a quem somos e que essa patologia nos impede de trabalhar para resolver efetivamente nossos problemas.

Dare to Dream Big by Chris Navarro

Segundo o Datafolha, mais de 60% dos jovens querem deixar o Brasil. Segundo o Itamaraty, mais de 3 milhões de brasileiros já concretizaram este desejo e vivem fora do país. Por outro lado, segundo as Nações Unidas, existem aproximadamente 736 mil imigrantes estrangeiros vivendo no Brasil. São 4 vezes mais brasileiros vivendo no exterior do que estrangeiros vivendo no Brasil! Para se ter uma ideia do quanto o número de imigrantes estrangeiros no Brasil é insignificante, ele representa apenas 0,4% de nossa população. Em termos de comparação, a Argentina tem 2,165 milhões de estrangeiros vivendo em seu território. O triplo que nós. Os Estados Unidos abrigam 1,410 milhões de brasileiros, grande parte em situação irregular. É quase o dobro do total de estrangeiros vivendo no Brasil.
De 2015 para 2017, o número de estrangeiros vivendo no Brasil cresceu em torno de 19 mil. Por outro lado, só em 2017, foram registradas exatas 21.701 declarações de saída definitiva pela Receita Federal.Nosso problema é outro. O fluxo migratório está na direção oposta à da imaginada pelo senso comum: não é que tenhamos gente demais querendo viver no Brasil. Temos é gente de menos querendo vir para cá e brasileiros demais querendo ir embora.
Como desconhecemos os fatos e deturpamos nossa imagem achando que há uma multidão querendo desfrutar de nossa famosa cordialidade (que produz 63 mil assassinatos e 41 mil mortes no trânsito), estamos constantemente agindo contra nossos próprios interesses.
Desde que Bolsonaro foi eleito — e em consequência disso, diga-se de passagem — coleciona-se os exemplos de atitudes irracionais. Somente para ficar no âmbito da migração, vamos citar 2 exemplos:
1) A saída dos cubanos do programa Mais Médicos. Como se não bastasse o êxodo de brasileiros qualificados em consequência da crise econômica que se instalou no país desde 2014, tomamos a brilhante decisão de expulsar mão de obra qualificada do país. Ao contrário do senso comum, esse programa não é uma jabuticaba brasileira. Países (desenvolvidos, inclusive!) com carência de médicos recorrem a instrumentos semelhantes. Como todos já devem (ou deviam) ter percebido, médicos são recursos escassos em todo o mundo. Torná-los ainda mais escassos é completamente ilógico. Palmas para nós: o fizemos.
2) A retirada o Brasil do Pacto Global para a Migração da ONU. Conforme o exposto anteriormente, um pacto que permita que os signatários continuem responsáveis por suas próprias políticas de imigração mas que dê garantias mínimas aos migrantes irregulares é de nosso completo interesse. Essa é a realidade de uma imensa parcela dos brasileiros vivendo no exterior. Emigrar é um desejo de um grande número de brasileiros. Nem todos têm condição de ostentar um diploma de medicina que lhes abra portas para um visto de trabalho ou uma conta bancária com saldo suficiente que lhes permita um visto de residência numa vida de ócio. Uma parcela significativa (talvez a maior) dos brasileiros que sai do Brasil para ganhar a vida no estrangeiro o faz de forma irregular.
A ilusão de que somos maiores, mais importantes e mais desejados do que realmente somos, nos faz agir constantemente de forma contrária aos nossos interesses. Nossos problemas são diferentes daqueles que achamos que temos. A esperança que possamos nos reconciliar com nossa verdadeira imagem, porém, é pequena. O que poderia nos ajudar a sair dessa armadilha é algo que, no momento está em completo desprestígio: conhecimento. Enquanto Olavo de Carvalho for o líder intelectual do país, não vai acontecer.

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