O colégio, a polícia e o apartheid social







Bem no comecinho da Asa Sul em Brasília, há um colégio público. É o Cesas, uma escola de educação de jovens e adultos, para os alunos que, atrasados em seus estudos, precisam completá-los porque, hoje em dia, ninguém arruma nada em nenhum lugar sem ao menos um diploma do ensino médio.
Desnecessário dizer que os alunos do colégio possuem um nível socioeconômico bastante diferente dos moradores da quadra adjacente. Não é preciso muito esforço para imaginar que um colégio público, de ensino supletivo, não vai abrigar alunos da mesma classe dos habitantes do outro lado da rua. Por isso, há um certo estranhamento entre moradores e alunos, em parte porque, como nas cercanias de qualquer colégio, se estabeleceu um tráfico miúdo de drogas, em parte porque, embora raros, já houve casos de vandalismo e, em parte, por causa da disputa pelo uso dos aparelhos de lazer da quadra que são vistos pelos moradores como de uso exclusivo deles.
É claro que esses são apenas uma parte pequena de um problema mais complexo. Não é raro ler sobre mobilizações que visam barrar iniciativas que proporcionarão, ainda que marginalmente, a interação entre classes sociais diferentes. Essa interação é vista com estranheza já que, entre nós, está enraizado que o único tipo de socialização possível entre pessoas de classes sociais diferentes é a relação de trabalho. Pobres e ricos só se relacionam quando um pobre presta algum tipo de serviço remunerado a um rico.
Meu primeiro contato com esse tipo de pensamento, aqui em Brasília, foi um abaixo assinado que circulou no trabalho pleiteando que não se concluísse as estações de metrô da Asa Sul. A justificativa: aumentaria o tempo de viagem dos moradores de Águas Claras, bairro de classe média, até o Centro de Brasília, onde está o trabalho delas. Passou desapercebido (ou talvez nem tanto) que essas estações abririam o Metrô aos moradores dos bairros periféricos que trabalham na Asa Sul. Passou desapercebido que bem em frente de uma dessas estações está a matriz da Igreja Universal e, embora seja uma percepção baseada no puro achismo, imagino que isso a torne uma das mais utilizadas nos fins de semana.
Mas esse não foi um caso isolado. Os moradores da quadra em que eu morei em Águas Claras se mobilizaram para acabar com um anfiteatro que lá existia. A comunidade do Sudoeste se mobilizou para impedir a instalação de um colégio público no bairro de classe média alta. Mais tarde essa mesma comunidade se insurgiu contra a revitalização de uma quadra esportiva. Há cerca de 5 anos, os moradores da Asa Sul iniciaram um movimento para impedir a construção de uma creche pública. Acho este caso bastante significativo porque o argumento utilizado como pretexto na mobilização foi que o local onde seria instalada a creche já estava sendo utilizado pelos moradores como espaço de lazer de seus cães. Nada contra os animais de estimação — eu amo a Lua — mas acho bastante cruel que se coloque o bem estar deles acima do de seres humanos, ainda que sejam seres humanos pobres. Além disso, basta abrir a janela de qualquer apartamento no Plano Piloto para se constatar o quanto esse é um não argumento: o que não falta por aqui é espaço livre para o lazer dos cães.
Na verdade, temos até que dar um certo crédito para a comunidade neste último exemplo: ao menos se tentou disfarçar a verdadeira razão pela qual não se desejava a construção da creche. Às vezes nem isso é feito: se fala na cara dura, com todas as letras, que o tipo de público que será beneficiado pelas intervenções não é o mesmo dos moradores da vizinhança. Para quê um colégio público no Sudoeste se as crianças desse bairro estudam quase que em sua totalidade em colégios particulares?
Sob essa perspectiva, não é necessário muito esforço para imaginar que o maior desejo dos moradores da quadra em relação ao Cesas é que ele seja levado para bem longe da vista de todos.
O Cesas não é o único colégio à margem da 402 Sul. Lá estão também 2 colégios particulares, dos mais caros de Brasília, e a Escola de Música. Onde tem colégio, particular ou público, tem aluno matando aula. Você pode até achar isso um absurdo, mas só porque finge que se esqueceu que já foi estudante um dia e já matou aula também. Outro dia, um grupo de alunos de um dos colégio particulares estava praticando essa arte milenar, bebendo e se pegando debaixo dos pilotis de um dos prédios. Chamaram a polícia. Ela revistou o grupo, ligou para os pais e manteve a garotada de pé até que um responsável viesse buscá-los. Foi um festival de pais e mães putos de vida atrás de seus filhos. Mas toda a abordagem foi feita no maior respeito. A polícia veio porque foi chamada. E, ressalte-se, eles estavam realmente fazendo merda. Mas eram alunos de colégio particular. O uniforme preto servia como um pedigree dos meninos e das meninas.
Hoje pela manhã havia um grupo no mesmo prédio. Esse prédio exerce algum efeito magnético sobre os jovens porque invariavelmente há um grupo deles debaixo de seus pilotis. Esse, em especial, não usava uniforme preto. Tampouco parecia estar fazendo qualquer outra coisa que não fosse simplesmente estar reunido.
A polícia tem uma grande dificuldade em aceitar um grupo de jovens reunidos, mesmo que seja simplesmente para trocar ideia, ainda mais quando se trata de um grupo de jovens pobres. Grupo de jovens pobres é sinônimo de baculejo.
É fato, também, que desde que o Ibaneis assumiu o governo do DF, a política da polícia tem sido a de abordar qualquer grupo de alunos do Cesas que esteja fazendo qualquer uso da quadra que não o único que lhe é considerado legítimo: passagem para o metrô. E, finalmente, é fato que a abordagem é feita de forma muito mais incisiva com os alunos de uniforme branco que com os alunos de uniforme preto.
Sempre que vejo os baculejos que eles tomam, fico me perguntando como me sentiria nessa posição. Dois sentimentos estão sempre presentes nesses exercícios: humilhação e raiva. Humilhação porque é óbvio que eles estão sendo abordados simplesmente pelo estereótipo que carregam consigo. São pobres num bairro de ricos. E raiva porque ela é a companheira natural da humilhação. E aí me pergunto: o que aconteceria se um dia essa raiva fosse canalizada em algum tipo de ação?
Sem a integração entre pessoas de classes sociais diferentes, não há como se construir uma sociedade que acomode, ainda que minimamente, o interesse de todos. Continuaremos, como sempre, nos enxergando como rivais que disputam recursos públicos escassos. Os colégios públicos que poderiam ser esse espaço de convivência perpetuam a lógica associada a qualquer serviço adjetivado como público: são para pobres. A ação da polícia nos afasta ainda mais. Não é à toa que o sentimento mais escasso nessa sociedade seja a empatia.

Postar um comentário

0 Comentários