Algum dia, o futuro há de olhar em direção ao presente e, perplexo,
nos perguntar como é que deixamos as coisas chegarem ao ponto onde
chegaram. “Como é que vocês deixaram 2019 acontecer”?
Me lembro do tempo em que um dos habitantes do futuro era eu. Olhava
para a grande tragédia do século XX e me perguntava, soberbo, como se
imune ao mesmo erro: “como é que os alemães deixaram Hitler acontecer
mesmo com tantos sinais que aquilo não havia de terminar bem”? O
problema é que olhando em perspectiva, é fácil ser profeta do passado.
Quando se está imerso no próprio processo histórico, por mais que se
tenha a intuição, os indícios, a certeza de que se está rumando no
caminho errado, se é apenas uma voz abafada pela cacofonia de vozes da
multidão. Apesar de toda a importância que, por pura pretensão,
costumamos nos atribuir, a verdade nua e crua é que raramente temos um
papel mais relevante do que sermos apenas uma peça de engrenagem, sem
quaisquer condições de exercer real influência no processo como um todo.
Somos apenas espectadores de nossa própria tragédia.
Tragédia. Marx dizia que a história se repete, a primeira vez como
tragédia, a segunda como farsa. Max vai além. Para ele a história não
serve para nos alertar sobre os erros do passado e impedir-nos de
repeti-los. Nossa história serve para nos lembrar dos erros do passado
com o intuito de nos inspirar a repeti-los seguidamente. Somos Sísifos
de nossos equívocos. Os farsantes da nossa história.
Espectador da própria tragédia. Foi como me senti tão logo ficou
claro que o Bolsonarismo era inevitável. Entre e definição e a
consumação, vivemos nossas vidas de forma estranhamente serena. Como a
população de uma cidade à espera do exército invasor que vai chegar a
qualquer momento para ocupá-la eis que os soldados que a defendiam até
então receberam ordens para abandoná-la. Conscientes da tragédia que se
aproxima, mas impotentes para impedi-la, vivíamos o dia a dia numa
estranha e resignada naturalidade. Não havia mais nada a ser feito. Só
restava aguardar. Então, aguardávamos.
Quando o destino se tornou realidade, descobrimos que ele era ainda
mais trágico do que imaginávamos. O ano começou soterrado em lama. Uma
lama literal que veio confirmar a lama metafórica que caiu sobre nós.
2019 avançou em fumaça. A fumaça que consumiu a floresta e asfixiou
meninos que dormiam em alojamentos improvisados do clube de futebol,
sonhando com um futuro que não lhes pertencia. Era o destino nos
mandando um recado: não terás futuro algum.
Como não tiveram futuro os rapazes-traficantes do Morro do
Fallet-Fogueteiro, chacinados pela polícia mesmo depois de rendidos.
Esses não tiveram comoção do cidadão de bem. Eram bandidos, marginais,
vagabundos. Vagabundos merecem a morte, ainda que não haja pena de morte
na Constituição. A Constituição reflete valores que gostaríamos de ter
na época em que foi promulgada, em 1988. Não reflete nem os valores que
tínhamos então, nem os valores que temos e nos orgulhamos agora.
A polícia mata. Mata muito e cada vez mais. Mata vagabundos que não
são necessariamente bandidos mas certamente são marginais – aqueles que a
sociedade deixa à margem de si. Mata também quem só teve o azar de
estar no lugar errado. Mata aqueles que só queriam se divertir no
Pancadão de Paraisópolis. Mata os inocentes. Mata a inocência. A
inocência da menina negra. A inocência de Ágatha Félix. Nas palavras
doídas do avô, quem morreu “foi a filha de um trabalhador. Ela fala
inglês, tem aula de balé, tem aula de tudo, era estudiosa. Ela não vivia
na rua, não”. Morreu uma menina de 8 anos para quem os pais faziam tudo
o que se dizia que pais devem fazer para garantir o futuro de seus
filhos. Morreu o discurso hipócrita da meritocracia na medida em que a
morte de Ágatha Félix corrobora a tese que crianças pobres que fazem
tudo certo não vão se dar melhor do que as crianças ricas que fazem tudo
errado. Os pais de Ágatha Félix fizeram tudo certo por ela. Ágatha
Félix morreu. Morreu pelas mãos da polícia. Morreu pelas mãos do Estado.
Morreu pelas nossas mãos. Morreu pelo nosso apoio ou nossa omissão.
Omitir-se diante de uma injustiça é escolher o lado do opressor. Nós
somos cúmplices. Ágatha Félix era inocente. Nós não.
Talvez 2019 tenha sido um ano necessário. O ano zero de nossa
consciência. Foi em 2019 que descobrimos, horrorizados, quem realmente
somos. Tomar consciência é um passo necessário para resolvê-lo. Esse
pesadelo um dia há de acabar. 2019, entretanto, não há de passar.
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