O último baile do Império

Desobedecendo recomendações do próprio Ministério da Saúde, Bolsonaro cumprimenta fãs em frente ao Palácio do Planalto em plena epidemia de Coronavírus.

A extrema-direita mais uma vez saiu às ruas, apesar dos apelos e decretos que cancelaram eventos esportivos, anteciparam férias escolares e pretendiam evitar aglomerações para diminuir a taxa de contaminação do Covid-19. Tudo em vão. Sob a hashtag #DesculpeJairMasEuVou e sob o incentivo (não tão) velado do próprio Bolsonaro que convocou, desconvocou e acabou comparecendo, pequenas multidões se formaram em cidades de todo o Brasil para, sob o pretexto de demonstrar seu apoio ao presidente, pedir o fechamento do Congresso e com o STF, intervenção militar e a promulgação de um novo AI-5. Incapaz de se conter diante da demonstração de elevado espírito cívico e democrático, Bolsonaro não só participou da carreata que se formou em Brasília pelas pessoas sensatas o suficiente para temerem o contágio do vírus, mas insensatas o suficiente para clamarem por uma ditadura, como também, mais tarde, derrubou as grades de proteção que isolavam o Palácio do Planalto e se deixou fotografar, por mais de uma hora, entre selfies e abraços, com 272 de seus fãs insensatos, aqueles que além de pedirem pela ditadura, ainda faziam questão de calor humano em plena epidemia.

Curiosamente, essas demonstrações de força marcam o fim do Governo Bolsonaro. Uma espécie de Último Baile do Império em que o cenário não é o Palácio da Ilha Fiscal mas a Praça dos Três Poderes. Bolsonaro pagou para ver e, seja em consequência da prudência de uma parte sensata de seus seguidores, se é que esta parte existe, que preferiu ficar em casa a se expor ao risco do contágio, seja pela indefinição representada por diversos avanços e recuos às vésperas dos atos, seja pelo cansaço que é natural quando se impõe um sem número de chamados às ruas por pautas que acabam nunca se concretizando, o fato é que a cartada de Bolsonaro acabou se mostrando aquém da aposta. Se os atos acabaram não sendo um fracasso total, também não tiveram adesão grande o suficiente para bancar uma ruptura com as instituições democráticas. Sequer terão capacidade para pressioná-las em favor de sua pauta regressiva nos costumes. Em relação à pauta liberal na economia, nem havia necessidade de tais atos. Deixados em paz, a afinação dos outros poderes com ela é tão grande que, na verdade, os protestos de domingo mais serviram para perturbá-la.

Nas últimas semanas, o cara que realmente está tocando a pauta econômica, Rodrigo Maia,  presidente da Câmara e virtual Primeiro Ministro, está fritando o Paulo Guedes de maneira tão evidente que o chamou de medíocre com todas as letras. Dada a incapacidade de entrega do Posto Ipiranga de Bolsonaro e a tempestade que se aproxima, causada tanto pela pandemia do Covid-19 quanto pela guerra comercial entre Rússia e Arábia Saudita em torno do volume de produção de petróleo, parece ser uma questão de (pouco) tempo até a queda do outrora todo-poderoso Ministro da Economia. Não parece improvável que nas próximas semanas o Meirelles seja chamado em meio ao caos de uma epidemia que se inicia quando os investimentos em saúde pública não só estão tão baixos a ponto de fechar leitos de urgência do SUS, como também não podem ser ampliados pelas regras impostas pela PEC do teto.

O ministro cai e, com ele, a confiança irracional do mercado racional brasileiro que, até 2 semanas atrás, sustentava recordes sucessivos do índice Ibovespa apesar dos  investidores estrangeiros terem retirado o valor histórico de R$ 44,5 bilhões da Bolsa de Valores no ano passado. Parece que nossos economistas neoliberais, tão ávidos em apontar as jabuticabas dos outros, não são tão bons quando se trata de identificar jabuticabeiras em seu próprio quintal. De uma hora para outra, já tem gente estimando que o crescimento do PIB que deveria ser de 2,5% acabe dando lugar a uma recessão, reforçando a máxima que as previsões econômicas existem somente para nos lembrar o quanto são precisos os meteorologistas.

Ninguém passa incólume por uma crise econômica como a que vem por aí. O segundo governo FHC acabou antes mesmo de começar quando o Banco Central, na esteira das crises asiática de 1997 e russa de 1998, adotou o regime de câmbio flutuante. Da mesma forma, o segundo governo de Dilma acabou quando o fim do ciclo de commodities, somado às pautas bombas do Eduardo Cunha e à paralisação forçada dos investimentos públicos que se seguiu às investigações da Operação Lava Jato, desembocou numa crise econômica da qual não nos recuperamos até hoje. Se a crise de 2008 não foi capaz de arranhar a popularidade de Lula, isso se deve tão somente à adoção de medidas contracíclicas de estímulos econômicos. O problema é que este tipo de medida causa urticárias à equipe econômica. E mesmo quando o Meirelles for chamado, tampouco se deve esperar mudanças muito radicais porque o consenso econômico que se formou desde 2015, quando Dilma Rousseff nomeou Joaquim Levy ministro da fazenda, também não é nada simpático à ideia de se afrouxar a política de austeridade fiscal.

Como se não bastasse a questão da crise econômica, temos que considerar que a pandemia de covid-19 que está por trás dela é tão grande que, por onde passa, força governos a trancar populações economicamente ativas inteiras dentro de casa. Infelizmente para nós, não somos o país abençoado por Deus e bonito por natureza que acreditamos ser. O vírus já está circulando no Brasil e com toda a certeza, o que aconteceu lá fora acontecerá aqui também. Daqui a um mês, quando o número de pessoas infectadas estiver nas alturas e as imagens dos doentes entulhados nos corredores de um sistema público de saúde sucateado estiverem estampadas nos jornais e telejornais de todo o país, de nada ajudarão as imagens de um sorridente Jair Bolsonaro nos braços da galera que ele ajudou a reunir, desconsiderando as orientações de seu próprio Ministério da Saúde para evitar aglomerações. Tampouco os prints de suas postagens no Twitter, algumas com imagens verdadeiras outras recuperadas de outras ocasiões, tecendo loas às manifestações que ocorreram em diversas cidades do país em homenagem à sua própria vaidade. Só espero que haja alguém da oposição fazendo curadoria deste material.

Também não ajudará a lembrança que o aumento no número de casos registrados coincidiu com o retorno de sua viagem aos Estados Unidos e que 7 membros de sua comitiva voltaram infectados de lá. E o que dizer de suas declarações afirmando que a pandemia se trata muito mais de uma "fantasia" propagada pela mídia no mundo todo e que o vírus estava sendo superdimensionado? Lula minimizou o tsunami da crise econômica de 2008 dizendo que no Brasil ele seria apenas uma marolinha, mas verdade seja dita, foram criadas condições materiais para bancar sua bravata. Já não há mais tempo para Jair Bolsonaro bancar sua aposta. Talvez até ontem houvesse, mas apesar dos estádios vazios, o povo foi à praia no Rio e às manifestações em todo o Brasil.

Nada disso passa desapercebido. Em todo o país, governadores tomam decisões que, intencionalmente ou não, lhes tornam exemplos de racionalidade em contraposição à irracionalidade presidencial. Os governadores do DF, Rio e São Paulo, com apoio da opinião pública em geral, anteciparam férias escolares, colocaram servidores públicos em teletrabalho, fecharam teatros, cinemas e academias. Nenhum deles é exatamente um feroz opositor de esquerda. Na verdade, eles só são opositores na medida em que Bolsonaro começou a fazer oposição a eles. Em Goiás, um governador Bolsonarista foi expulso por Bolsonaristas ao tentar encerrar uma manifestação Bolsonarista em nome da saúde pública. Enquanto isso os presidentes do STF e do Congresso discutem ações contra o coronavírus sem a presença de Bolsonaro. Bolsonaro pode até escapar do coronavírus. Seu governo não.

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