Novos hábitos de um novo normal


Quando desci para pegar uma encomenda ontem à tarde, a quadra estava lotada. Mulheres pegando sol de biquíni, pais com bebês no colo, donos passeando com seus cachorros. Ao fundo, na quadra de areia, um grupo disputava uma animada partida de futevôlei.

Não é que meus vizinhos tenham enlouquecido. A impressão que dá é que todos enlouqueceram. Dia desses, voltando do supermercado, observei cena idêntica em outra quadra. Nas imediações da Catedral Rainha da Paz, todos os fins de semana uma multidão estaciona seus carros ao longo do Eixo Monumental, saca suas cadeiras de praia e se põe a admirar o pôr do sol como se nada de excepcional estivesse acontecendo.

Pior: não é que as pessoas estejam mantendo inalterados seus velhos hábitos. Elas estão adotando novos hábitos. Eu, que costumava descer com uma toalha para ler no gramado, à sombra da árvore, chegava a me sentir deprimido com o deserto que as quadras de Brasília, todas elas, sem exceção, se transformam aos fins de semana. Estivéssemos vivendo um pingo de normalidade, não tenho a menor dúvida que as pessoas estariam todas confinadas em casa num domingo à tarde, mas como não é esse o caso e há a necessidade das pessoas se confinarem em casa, elas resolveram que devem se confraternizar ao máximo. É como se as pessoas tivessem resolvido enfrentar a pandemia estufando o peito e gritando em desafio:

- Pode vir coronavírus! Não tenho medo de você.

Eu poderia até dizer que isso decorre do (mau) exemplo presidencial que numa de suas infinitas intervenções infelizes sobre a pandemia afirmou que é preciso enfrentar a doença "como homem, pô, não como moleque". Tradicionalmente, enfrentar as coisas como homem significa empregar altas doses de testosterona e pequenas doses de racionalidade. Seria uma boa explicação, porém injusta.

Ainda que os passeios de Bolsonaro por Brasília e região, sem máscara e sem qualquer preocupação em evitar aglomerações, muito pelo contrário, fazendo questão de causá-las, não contribuam, é difícil sustentar que ele seja o único responsável pelo caos que experimentamos. A única coisa em que esse governo é realmente bom é conseguir arrumar culpados para responsabilizar por sua incapacidade de agir para resolver problemas. Temos que admitir: Parabéns, Bolsonaro: você conseguiu mais uma vez.

O STF decidiu e Bolsonaro faz questão de frisar dia sim, dia também: a responsabilidade sobre as medidas de restrição das atividades econômicas é de responsabilidade de governadores e prefeitos. Ainda que não ajude quando faz lobby pela "volta à normalidade", como se isso fosse possível, também não é possível responsabilizá-lo pelo fato do estado do Rio de Janeiro, após 3 meses de pandemia, ter conseguido botar em funcionamento apenas 2 dos 7 hospitais de campanha prometidos. Neste ritmo, já estaremos vivendo a normalidade, uma nova normalidade que ninguém sabe ao certo como será, quando todos eles tiverem sido inaugurados.

Tampouco ajuda a população do DF acordar numa segunda-feira com a notícia que o governador decretou calamidade pública por conta do covid-19 depois de passar o domingo desmentindo o áudio vazado no sábado em que um médico do Hospital de Base denuncia o iminente colapso do sistema de saúde pela falta de leitos. São sinais trocados que minam a credibilidade das autoridades e fazem com que a população passe a acreditar na "verdade" que lhe for mais conveniente. Quem acha que a situação é preocupante vai se apegar à decretação de calamidade pública. Quem acha que é só uma gripezinha, um resfriadinho, vai se apegar à lembrança que o governador passou a semana anterior inteira brigando judicialmente para flexibilizar as medidas de restrição econômicas e que até data para reabrir as escolas o GDF já tem (e ela está logo ali).

Se há uma culpa que o Bolsonaro carrega é a de não ter conseguido - ou desejado - manter uma autoridade central que definisse critérios objetivos a serem seguidos por estados e municípios. O Ministério da Saúde, a quem caberia este papel, está sem comando efetivo há mais de mês, na mão de um general sem formação ou experiência médica, transformado num órgão cuja única função é desovar um gigantesco estoque de cloroquina, suficiente para 18 anos de consumo regular, na ânsia de fingir que está fazendo alguma coisa para lidar com a pandemia que não seja arrumar desculpas e culpados pela centena de milhar de mortos que vão resultar da resposta mais ineficiente de todos os países do mundo no combate ao coronavírus.

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