Férias


Estou de férias. Não era o bem que o que tínhamos planejado quando conseguimos conciliar um período que coincidisse com as férias escolares das crianças. Imaginávamos poder viajar para algum lugar legal e não estarmos trancados dentro do apartamento. Wandréa até conseguiu remarcar seu período para Dezembro, mas no meu trabalho baixaram ordem expressa que remarcações durante a pandemia somente podem ser feitas por motivos excepcionais e com autorização da chefia. Não era o caso.

Não me sinto no direito de reclamar. Até entendo o lado da chefia. Além disso, somente o fato de estar empregado, com o salário em dia e podendo praticar meu isolamento social já me deixa em condição privilegiada. Reclamar seria um deboche com quem não tem nada disso. Mesmo que fosse possível remarcar, também não há nenhuma garantia que no fim do ano a situação já vá estar normalizada. Espero que sim, torço para que sim, mas o momento não é dos mais propícios para se fazer planos além da semana que vem. Vamos vivendo um dia de cada vez, torcendo para que um dia esse pesadelo seja coisa do passado e acompanhando os números relacionados ao coronavírus como se fossem estatísticas de jogos. Li que era assim que faziam os alemães nos tempos da Guerra.

Talvez, em nome de bom humor, seja o caso de imprimir uns cartazes com o nome de lugares que gostaríamos de visitar e colá-los nas portas dos cômodos. Londres pode ser a sala, Berlim o quarto, Amsterdã o quarto do meio, Roma o quarto das crianças. Quando Wandréa perguntar "aonde você está indo?", posso responder "vou a Paris providenciar o almoço".

Quem sabe eu possa aproveitar o tempo disponível para escrever 40.000 palavras de um conto. Duvido muito, meu processo criativo se dá principalmente escrevendo à mão, na caligrafia miúda e redonda da que aprendi na alfabetização e pouco mudou desde então. Os cadernos até ficam bonitos, mas leva tempo. Pena. Seria uma boa forma de extravasar a angústia no papel. Essa é a vantagem de se ser escritor: é possível se vingar das pessoas no papel. Embora eu não seja escritor, de vez em quando pratico isso. Às vezes a raiva é tanta que nem coragem tenho de publicar mais tarde, nem mesmo neste blog chinfrim que as pessoas só leem quando eu mando o link para elas, como criança que quer chamar a atenção dizendo "olha pai, o que eu fiz" e nem se importa que ele o faça com nítida má vontade, somente para se ver logo livre do pirralho e voltar pro Facebook.

Desconfio que essas hão de ser as férias mais improdutivas que já tive na vida, mas não dá para reclamar. Ainda conseguimos nos manter livres do coronavírus, embora às vezes dê a impressão que o cerco esteja se fechando. Gostaria de pensar que em 20 dias, quando tiver voltado ao trabalho, a situação, ainda que não esteja sob controle, ao menos esteja se encaminhando para isso. Não consigo.

Juro que quando comecei a escrever esse post, não imaginava que ele ia tomar o rumo para o qual ele está se direcionando. A intenção era apenas um registro despretensioso porque, afinal de contas, isso aqui é um blog pessoal. Contudo, por mais que eu tente, parece-me impossível desviar dos assuntos covid e Bolsonaro. Acho que me tornei monotemático, um daqueles caras chatos que só sabem conversar sobre um único assunto: Fulano que só sabe falar de futebol. Beltrano que só sabe falar de corrida. Sicrano que só sabe falar de computador. Aí o cara te vê e já pensa logo:

- Pô, lá vem o chato do Max falar sobre coronavírus e Bolsonaro de novo. Será que dá para me esconder ou ele já me viu?

Talvez seja até natural para quem está trancado em casa há cerca de 4 meses e é bombardeado incessantemente, toda a vez que acessa o Twitter ou liga a TV, com notícias sobre Bolsonaro e a epidemia de coronavírus. Talvez não seja só eu, mas todo o país que esteja prisioneiro nesse ciclo de notícias trágicas. De qualquer forma, agora já está escrito. Foi mal. O lance é que:

Fiel à anedota que diz: "não é que você seja um completo inútil: ao menos serve de mau exemplo", o Brasil vai conseguindo se destacar como um exemplo do que não fazer durante uma pandemia. Somos governados por loucos conscientes, que não se importam de sacrificar vidas para manter narrativas. O presidente está contaminado por covid-19 e, talvez porque tenha desenvolvido uma forma branda da doença, continua causando aglomerações, brandindo caixas de cloroquina como se fosfoetanolamina fosse, para o deleite de uma multidão de fanatizados que parecem estar mais dispostos a morrer em sacrifício ao líder do que a abandonar suas convicções que o Messias em seu nome não é uma coincidência, mas uma profecia.



Bicado duas vezes pelas emas do Alvorada, não tenho dúvidas que filas se formariam no cercadinho do jardim zoológico se Bolsonaro dissesse, em uma de suas surreais lives de quinta-feira, que não tem comprovação científica que bicada de ema cura covid, mas também não tem comprovação científica que não cura e, por isso, quem é contra o tratamento por bicada de ema está aumentando o número de mortes. "Pode até ser que não funcione, mas eu sou a prova que funciona, pô".


Somos governados por um ser humano que não tem capacidade de dar bananas a uma ema sem se ferir, que dirá de conduzir um país no meio de uma pandemia que, até hoje, tem cerca de 79.500 mortes confirmadas e que não dá o menor sinal de estar arrefecendo. Não atingimos o pico porque planalto não tem pico, ainda que continue sendo no alto.

A primeira guerra mundial matou 600.000 italianos e deixou um trauma tão grande que dele derivou um trauma ainda maior. Quantos brasileiros precisarão morrer para que as pessoas se convençam que estamos diante de uma tragédia? Desconfio que esse número é muito mais qualitativo do que quantitativo. Não se trata de quantos morrem, mas de quem morre.

Diferentemente do usual, o covid-19 foi uma doença que começou pelas classes mais ricas antes de se espalhar em direção às periferias. Ainda que seja comum se chocar mais no início de uma pandemia e ir perdendo o medo, me parece razoável supor que uma queda tão drástica nos níveis de isolamento no Brasil tenha relação com a fala do presidente da XP: "O pico da doença já passou quando a gente analisa a classe média, classe média alta. O desafio é que o Brasil é um país com muita comunidade, muita favela, o que acaba dificultando o processo todo". O Brasil está bastante acostumado a matar gente de comunidade, de favela. Tenho certeza que 100.000 pretos pobres mortos cabem perfeitamente na consciência nacional (ou na falta dela). Meu receio é que esse número seja infinito.

Já tem gente que teria declarado que "é bom que as mortes se concentrem entre os idosos… Isso melhorará nosso desempenho econômico, pois reduzirá nosso déficit previdenciário". Não duvido que tenha gente que ache que o covid é uma boa chance de acabar com o desemprego acabando com o desempregado.

A essa altura, é injusto creditar o caos apenas a Bolsonaro. Governadores e prefeitos até vinham dando mostras de racionalidade o que, convenhamos, nem demandava muito esforço quando se coloca em perspectiva a régua usada na comparação. Um fechamento das atividades econômicas aqui, a construção de um hospital de campanha ali e até um Wilson Witzel ou um Ibaneis Rocha conseguem parecer exemplos de racionalidade. As expectativas estão muito baixas. De um tempo para cá, porém, a situação se modificou. No início da pandemia, trancou-se as pessoas em casa. No auge, com as UTIs se encaminhando para o esgotamento, libera-se geral, mesmo os estabelecimentos onde notoriamente se tem o maior risco de propagação do vírus. Bares, restaurantes, academia: tudo liberado.

Outro dia uma reportagem do Metrópole aqui de Brasília mostrou um grupo de amigos confraternizando numa mesa de bar numa quarta-feira de manhã, assim que esses estabelecimentos puderam ser reabertos. Tinha até máscara personalizada, equipada com zíper, confeccionada especialmente para a ocasião. Não querendo ser de mau agouro, espero que a próxima reunião da turma também tenha um clima de comemoração, numa mesa de bar, e não de lamentação, numa capela de cemitério.

Curiosamente, as avaliações de popularidade dos governadores e prefeitos cai, à medida que a flexibilização avança mostrando que, talvez, não seja nem o bem estar da população nem o impacto na avaliação pessoal dos envolvidos o que impulsiona esse tipo de medida. As pesquisas de opinião ainda mostram uma apoio majoritário da população ao isolamento social por mais empenhada que esteja a máquina de propaganda bolsonarista na mudança da narrativa.

As preocupações sobre a saúde financeira dos CNPJs estão prevalecendo sobre a saúde dos CPFs ainda que a dicotomia entre salvar vidas ou salvar economia seja falsa. No limite, não há economia sem vidas. Tampouco é o isolamento que está causando prejuízo financeiro. É o vírus, estúpido! Comerciantes das cidades que já avançaram na flexibilização econômica reclamam do baixo movimento e das vendas fracas. Pode-se liberar a abertura das lojas, mas ainda não se pode obrigar as pessoas a consumirem. Ainda. Talvez não esteja longe o dia em que o sigilo do cartão de crédito das pessoas seja quebrado para que elas sejam obrigadas a manter o mesmo nível de consumo que tinham antes da pandemia. Melhor até não ficar falando essas ideias em voz alta que vai que tem alguém da equipe econômica escutando.

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