Sobrevivendo na quarentena: trabalhos domésticos


Sem que percebêssemos, o novo normal foi se instalando na nossas vidas. Começou com as tarefas domésticas. Aquele jornal francês, um tal de Libération, tinha razão quando noticiou que "com o confinamento, a burguesia brasileira descobriu as tarefas domésticas". Bem, nem toda a burguesia. Alguns patrões não conseguiram abrir mão do trabalho de suas empregadas domésticas e até usaram de artifícios para massagear suas consciências. Pagavam o Uber para que elas chegassem no trabalho sem correr o risco de se contaminarem no transporte público ou evitavam contar a elas que estavam contaminados. A primeira morte por covid-19 registrada no Rio de Janeiro foi assim.

Não foi o que aconteceu aqui em casa. As tarefas domésticas que eram solenemente ignoradas porque tínhamos Isabel 3 vezes por semana para executá-las e, de certa forma, porque não nos importávamos de conviver com um caos limitado nos dias em que ela não vinha, tiveram que ser incorporadas ao cotidiano. Uma das primeiras providências foi a compra de um daqueles robôs que limpam o chão e que aqui em casa ganhou o carinhoso apelido de Tio Ricardo, em homenagem ao bolsominion tio das crianças. Como o Tio Ricardo, ele também é robô, ainda que daqueles robô de internet que ficam passando adiante as fake news que recebe pelo Whatsapp, possui inteligência limitada e vive passando pano para as cagadas do presidente.

Não sei bem ao certo se foi sorte ou lucidez, mas conseguimos perceber logo de início tanto que nosso confinamento haveria de durar um bom tempo, quanto que não daríamos conta de varrer a casa com a frequência necessária para que ela se mantivesse habitável. Não muito tempo depois me pediram uma "carta de referência" do nosso Tio Ricardo e quando fui ao site do fabricante pegar o modelo direitinho, ele encontrava-se esgotado. Parece que não fomos os únicos burgueses que descobriram as tarefas domésticas.

Não que o Tio Ricardo faça aquela Faxina com "F" maiúsculo. Há alguns tipos de sujeira que ele se recusa terminantemente a lidar. Pedaços de unha, por exemplo, são arremessados para o outro lado do cômodo. Mas como nosso nível de exigência está reconhecidamente baixo, quando percebemos uma poeirinha naquele cantinho atrás da porta que o robô não consegue alcançar, olhamos para o outro lado e fingimos não ter visto o que vimos. Dá para o gasto. Pela poeira que sai quando esvaziamos seu compartimento percebe-se que, diferentemente do Tio Ricardo original, o nosso tem sua utilidade. Além disso, como dizia a sabedoria popular, "mal lavado não é sujo".

Uma vez por semana passamos pano de verdade. Não, não é quando falamos que o PT só não aprofundou as reformas estruturais porque a correlação de forças não permitia. Fazemos isso também, principalmente com os parentes bolsominions, mas, no caso, estou me referindo a quando, munidos de baldes, deixamos o porcelanato brilhando. Dá até prazer pisar descalço no chão, pelo menos pelos 5 minutos em que as crianças ainda não perceberam a novidade e se põem a brincar de João e Maria pela casa, deixando atrás de si uma trilha de migalhas. Ou então se propõem a fazer brownie que farelo de brownie gruda no chão e o Tio Ricardo não consegue tirar. Então, passamos uma semana olhando para o outro lado até que seja sábado novamente para passarmos pano e ter o chão da cozinha limpo, nem que seja pelos próximos 5 minutos. Nota mental: se algum dia fizermos reforma na cozinha, procurar um piso cor de brownie.

As crianças são um caso à parte. No início de nossa quarentena, a essa altura cada vez mais voluntária porque dá a impressão que somos os únicos em confinamento, tentamos conversar sobre o que viria pela frente e que precisaríamos contar com a colaboração de todos. Tem pai que é iludido mesmo. No fim das contas, dá mais trabalho tentar fazer com que elas colaborem do que o trabalho que ela nos economizariam colaborando. Até colocar a louça dentro da pia parece que faz cair a mão. Dentro da máquina, então, é trabalho forçado. Nos dias em que não resolvem suas desavenças à mesa do almoço com guerra de comida já estamos no lucro. Sabe como é, né? Muito ajuda quem não atrapalha.

As tarefas domésticas são de longe o trabalho mais ingrato que existe. Em primeiro lugar porque ninguém reconhece sequer que se trate de um trabalho. É como se todos considerassem que há um cesto mágico no banheiro e que é só jogar a roupa suja nele para que ela, magicamente, apareça limpa e dobrada nas gavetas do armário, sem a necessidade de qualquer intervenção humana. Se há algum problema com o cesto mágico talvez seja o tempo que ele demora para executar o truque. Talvez na gringa já tenham inventado um modelo tão mais moderno e tão mais eficiente que o tempo decorrido entre o instante em que a roupa é jogada no cesto e o instante em que ele apareça no armário seja menor do que o gasto para percorrer a distância entre o banheiro e o quarto. Um cesto mágico instantâneo.

Em segundo lugar, trata-se de um trabalho sem fim: para onde se olha, sempre há algo a fazer, seja uma pilha de roupas a ser lavada, uma teia de aranhas a ser removida, uma poeira no móvel a ser espanada, um limo no box a ser esfregado. Às vezes dá para olhar para o outro lado, mas quando você percebe que a criança está usando a mesma camisa há uma semana porque a caixa mágica parece ter entupido, tudo o que lhe resta é culpar a criança dizendo que ela nunca consegue achar nada e correr com o cesto transbordando de roupa suja para a área de serviço. Se há algum consolo na situação, é que nesta época do ano, em Brasília, a roupa na corda seca de um dia para o outro.

Não que esse acúmulo de roupa suja signifique que não se está trabalhando. Significa apenas que as prioridades estão mal escalonadas porque a verdade é que sempre se está fazendo alguma coisa. Existe até um certo alívio quando, no trabalho remoto, se convoca uma reunião: é a oportunidade para fechar a câmera, meter o fone de ouvidos para acompanhar e se jogar para a área de serviço para estender a roupa na corda.

Aliás, fones de ouvidos são acessórios tanto subestimados quanto necessários nesta quarentena. Já comprei dois pares desde que ela começou: subestimados porque os áudios de Whatsapp, stories de Instagram, vídeos do Youtube, aulas no Zoom, todos executados simultaneamente geram uma cacofonia tamanha que é quase possível sentir saudades das campanha que se fazia para coibir os DJs de ônibus. Pelo menos se reconhecia que atrapalhar o sossego do alheio estava errado. Hoje em dia, em que todos estão tão ensimesmados em seus smartphones que nem notam os indivíduos ao seu redor, tudo o que resta aos incomodados é descolar um bom par de fones antirruído e se concentrar à base de massivas doses de heavy metal instrumental.

E aproveitar o tempo das tarefas domésticas para botar os podcasts em dia. E haja podcast para tanta tarefa doméstica. Lava a louça do café, Medo e Delírio em Brasília. Faz o almoço, Lado B do Rio. Estende a roupa na corda, um podcast bem leve para combinar, Viracasacas. Lavar os banheiros, Xadrez Verbal. Assim vamos sobrevivendo na quarentena, esperando essa maldita imunidade de rebanho que não vem nunca, contando os dias para que Isabel venha nos salvar de nós mesmos.

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