Sobrevivendo na quarentena: cozinhando.


Há duas situações que mostram que você aprendeu a cozinhar: ou quando a família prefere que você faça o almoço de domingo a pedir comida no restaurante ou quando a balança diz que você está ganhando peso comendo da própria comida. A não ser, claro, que você só saiba fazer brigadeiro. Não é o caso: o doceiro aqui em casa é o Gabriel. Então, se não fosse por uma questão de falsa modéstia, eu poderia dizer que estou mandando bem no fogão.

Curioso como nessa quarentena cada um aqui em casa se especializou numa ramo diferente da culinária: eu me especializei no almoço, Gabriel se especializou nos doces, Wandréa se especializou no iFood e Pedro... Bem, Pedro se especializou em comer. Nosso isolamento coincidiu com a fase mais aguda do crescimento das crianças, aquela em que parece não haver espaço físico nos armários da cozinha para armazenar todas as calorias que eles conseguem consumir - e o que é mais incrível - sem adicionar nenhuma célula de gordura no abdômen chapado. Ô inveja. Espere e verá, meu caro. Com frequência, tenho a impressão que as crianças passaram no concurso para a Vigilância Sanitária porque depois do meio-dia, elas entram de 5 em 5 minutos não se sabe se para fiscalizar a cozinha do restaurante ou na esperança que olhar para as panelas acelere o cozimento (ou apresse o cozinheiro).

Isso trouxe uma mudança radical. Até bem pouco tempo atrás, o pessoal aqui em casa era meio luxentinho, sabe? Daquele tipo que faz cara de nojinho quando descobre que a janta será as sobras do almoço. Agora, nem mais sobra tem que eles batem um prato de arroz com feijão esquentado no micro-ondas como lanche da tarde e, se tiver aquele pote de doce de leite uruguaio, guardado na esperança que se possa degustá-lo aos poucos mais tarde, melhor considerar a hipótese de instalar um cadeado na geladeira ou arranjar um esconderijo mais seguro. Na verdade, essa tática já está sendo usada e não sou eu quem está malocando comida nos armários da cozinha para não ter que dividir com os outros moradores da casa.

Desde antes da pandemia, somos coagricultores de uma comunidade agroecológica. Grosso modo, funciona como um dos CSA do MST. Pagamos uma mensalidade de R$ 200,00 em troca de uma cesta de produtos que a família agricultora conseguiu produzir ao longo da semana. Não escolhemos o que vem na cesta, pois ela depende do que se pode produzir em cada época do ano. É uma forma de consumir produtos orgânicos baratos - em grande medida porque a figura do atravessador foi eliminada da cadeia de distribuição -, garantir uma previsibilidade de renda às famílias agricultoras e, não menos importante, preservar o meio ambiente, uma vez que além da não utilização de agrotóxicos, o projeto prevê a recomposição de parcela de vegetação nativa das propriedades envolvidas.

Para pessoas urbanas como nós, isso tem consequências inusitadas: quando se vai no supermercado, geralmente compra-se:
  1. aquilo que se consegue identificar;
  2. aquilo que se sabe preparar e, talvez o mais importante;
  3. aquilo de que se gosta.
Neste novo esquema, nem sempre conseguimos passar da fase 1: Não é raro que após a distribuição das cestas, o grupo de Whatsapp da comunidade seja inundado por fotos e solicitações de identificação de legumes. Quando não se tem a humildade de recorrer a tal expediente, alguns acidentes podem ocorrer.

Algo que costumo cozinhar com frequência é o arroz contudo. Aprendi com mamãe. Já que é necessário consumir vitaminas, por que não aproveitar para jogar um monte de legumes pra cozinhar junto com o arroz e economizar na lavagem de mais uma panela? Cenoura é uma coisa que cabe certinho nessa filosofia culinária. Outro dia, piquei uns legumes laranjas que tinham vindo na cesta da semana e joguei na panela. De início achei estranho que o arroz ficou mais colorido do que o de costume. Depois, percebi que o gosto dos pedacinhos de cenoura não tinham gosto de cenoura. Deve ser porque o legume laranja não era cenoura, mas cúrcuma. Não posso dizer que arroz com cúrcuma tenha sido a melhor receita que já fiz na vida, mas como citei anteriormente, as crianças estão em fase de crescimento.

Não é nem que a questão do preço importe tanto na decisão de cozinhar. Com a pandemia, os restaurantes tiveram que se adaptar e reduziram o preço (embora também tenham reduzido perceptivelmente qualidade e quantidade). É que eu considero pedir comida o pior dos mundos: come-se comida fria e ainda se tem uma arrumação da cozinha pela frente após a refeição. Na moral, tirando pizza, sushi ou salada, que podem (ou devem) ser consumidas frias, poucas vezes terminei uma refeição para viagem achando que tinha feito um bom negócio. Assim, acrescentamos uma hora e meia aos nossos afazeres domésticos diários e encaramos o fogão com (razoável) boa vontade.

Como hoje, por exemplo, plena terça-feira, que teve joelho de porco na cerveja. Eu pagaria por essa comida. Já teve bacalhau (congelado que dessalgar ainda é um mistério para mim e costuma somar alguns dígitos na pressão sistólica dos comensais), já teve feijoada, risoto, lasanha de abobrinha e, o que me deixou mais surpreso: moela, que eu nem sabia como começar a fazer. Gabriel faz brownie e petit gâteau do zero, muito melhor do que os semiprontos que se compra no supermercado. Desde que o homem do pão parou de aparecer na quadra (espero que ele esteja bem, que não tenha sido infectado com covid), voltamos a fazer pão. Tudo bem que tem a panificadora, mas no início da quarentena, a correia arrebentou e até que a consertássemos, tivemos que aprender a sovar a massa na mão mesmo. Pra alguma coisa essa quarentena está servindo.

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