Notas Hospitalares

 

Sinto cheiro de remédio saindo de mim por todos os poros e orifícios. Está nas fezes, nos gases, na urina, no suor, no hálito e até mesmo no ar expirado que, retido sob a máscara N95, é inspirado novamente. Ainda assim, o mundo gira.

O serviço hospitalar depende essencialmente da figura do acompanhante. Há uma enorme gama de trabalhos que lhe são delegados, inclusive verificar de tempos em tempos se o paciente continua vivo. Sem o acompanhante, não me surpreenderia que o enfermo só seja declarado morto no dia seguinte, à troca do plantão, quando já estiver fedendo. Tudo só se move na medida em que o acompanhante se move. É ele que tem que levar pedidos e trazer resultados pelo arquipélago que é um hospital particular que, ao terceirizar serviços que deveriam lhe ser imanentes, cria diversas ilhas que não se comunicam. Me refiro, em específico, aos exames laboratoriais sem os quais um pronto socorro não funciona, mas que por algum motivo específico (lucro), foram delegados a uma rede de laboratórios que, apesar de manter uma unidade no hospital, não teve seus sistemas integrados. Resultado: a integração é feita através do velho protocolo PPL/PPC (Papel Pra Lá/Papel Pra Cá) usando o acompanhante como meio de transmissão. Surpreendente, portanto, que peça tão essencial nesta engrenagem seja tão maltratada. Além da nítida impressão que ele está incomodando quando pergunta cadê o médico que ficou de reavaliá-lo 2 horas atrás e ainda não o fez, tudo lhe é cobrado, do almoço à roupa de cama.

Nos preparativos do velório de Thereza, presenciei as tratativas entre o agente funerário e a pessoa que negociava em nome da família. Me surpreendeu o quanto a morte pode ser assimétrica. Veja bem, longe de mim criticar  o sujeito que está negociando os termos de seu trabalho: eis do que cruamente se trata: um trabalho que, como o próprio nome já diz, dá trabalho e deve ser remunerado como tal. O que causa estranhamento é a diferença da perspectiva em relação ao corpo. De um lado, amigos e familiares em luto que se despedem de alguém. De outro, uma pessoa que descreve seu serviço com a naturalidade de quem encara um velório como uma atividade rotineira:

- Não se preocupe que a gente vai vestir a Thereza com a roupa que a Dona Neuza trouxe para ela. 

- Fica tranquila que a gente vai maquiar a Thereza e ela vai ficar bem bonita no caixão.

- A coroa de flores com a homenagem da família está incluída no pacote. Vocês querem escolher uma frase?

Não me leve a mal, não estou comparando os profissionais que me atenderam com coveiros mesmo porque, se fosse esse o caso, não estaria eu aqui escrevendo esse post, mas psicografando-o por intermédio de um centro espírita. O que eu quero dizer é que surge naturalmente um embrutecimento que torna o trabalho suportável. A assimetria ocorre porque se um agente funerário for tomar para si todas as dores de todas as família que passam por sua jurisdição, não há psicológico que dê conta do recado. Num hospital, acontece o mesmo. Se o paciente está estável, ele pode esperar. Mesmo que haja providências a serem tomadas - despacha-se as crianças para a casa da avó ou volta-se para casa no mesmo dia? -, sabe como é: o paciente está estável, pode esperar que as auxiliares de enfermagem elogiem o novo corte da doutora e que essa explique detalhadamente o procedimento adotado. Não no paciente, no cabelo.

A auxiliar veio pegar meus sinais vitais. A máscara azul N95 cobre a boca mas deixa o nariz desimpedido. Minha porta-voz detalha pela enésima vez a sequência de acontecimentos que nos levaram até lá. Não foi a primeira crise de labirintite que eu havia tido. A última deve ter ocorrido cerca de um ano antes, enquanto eu corria na ciclovia ao longo da L2 Sul e tive que me apoiar numa árvore para não tombar completamente. Ainda tive que me sentar antes de que a sensação que o mundo estava girando passasse por completo e eu pudesse retomar a corrida a caminho de casa.

- E você nunca quis fazer uma tomografia?

Não. Nunca quis fazer uma tomografia em toda a minha vida. Todas as vezes que me deixei submeter a essa brutal carga de radiação foi porque o médico com quem estava me consultando quis que eu fizesse. Reconheço humildemente a completa ignorância que me impede de opinar a respeito da necessidade de exames de imagem para se fazer diagnósticos neurológicos. Desta vez o médico quis. O que eu queria mesmo é que ele me liberasse para ir logo para casa, mas sendo justo: no lugar dele, com meu CRM na reta, teria feito o mesmo. Faz o exame, interna o doente e deixa a especialista opinar no dia seguinte.

Cuidados hospitalares são funções das mulheres. Equipe de limpeza, alimentação e auxiliares de enfermagem são virtualmente todas mulheres. A enfermagem é majoritariamente exercida por mulheres. Mesmo a medicina é dividida meio a meio, talvez pendendo mais para o campo feminino. Aos homens estão destinados as funções que exigem força: são os padioleiros. Daí para cima eu já não sei, não tive contato. Imagino que não. Ainda assim há um recorte de classe na divisão do trabalho, cuja nitidez se mostra em escalas de cinza. As auxiliares de enfermagem eram negras. As médicas brancas. As auxiliares de enfermagem me tratavam super-bem. Com exceção da que me internou, as médicas tendiam a me ignorar.

Há uma confusão a respeito do papel de uma ouvidoria. Ouvidoria deveria encaminhar as demandas para o setor reclamado que, então, deveria ou resolver ou justificar a impossibilidade de fazer algo a respeito. Quando a ouvidoria passa a justificar ela própria as queixas, é sinal que sua razão de ser é a de ouvir para ver se o cara que tá reclamando se acalma.

O tempo é um fator altamente assimétrico na relação entre médicos e pacientes. O tempo do médico é medido em quilates de diamantes. O do paciente em toneladas de papel reciclado. Não importa se o paciente está internado desde ontem aguardando uma ressonância magnética para ser liberado: ele pode esperar até às 11 horas da noite porque esse é o melhor horário para o serviço e o paciente pode esperar. Não que o hospital vá se abster de cobrar a diária resultante pela escolha que ele tomou. Negócios são negócios, rapaz.

Não deve ser muito difícil desenvolver um app de celular que gerencie a sala de espera de um consultório. Integrado ao Google Maps, ele poderia até alertar o paciente que está na hora de sair de casa a tempo de não mofar na sala de espera. 15 minutos são mais do que aceitáveis. Ainda mais em tempos de pandemia que, por mais que estejamos todos saturados, ainda não terminou. Mas, sabe como é: o médico não pode esperar 1 minuto sequer: o tempo dele é precioso. Ao paciente, o atestado de comparecimento diz que ele compareceu no turno da manhã. Manhã vai de 9 ao meio-dia.

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