Maldita gente má

Se o mundo fosse um lugar justo, pelo menos poderíamos nos apegar à esperança que um dia toda essa agonia teria fim. Que os bons seriam premiados e os ímpios punidos. Pena que o mundo não seja esse tipo de lugar. A vida real é a soma das dores.

A soma das dores das mães pretas e dos pais pretos, que choram sobre os caixões de seus filhos pretos, mortos por aqueles que deveriam protegê-los, mas que no pretume da noite, em seus uniformes pretos, trajando máscaras pretas que servem não para protegê-los do vírus, mas para mantê-los anônimos, largam o dedo em seus fuzis pretos sobre os corpos das crianças pretas, não com a intenção, mas mais com a indiferença de quem sabe que a carne preta é barata, é a mais barata do mercado.

A mesma indiferença que jogou o filho de Mirtes do 9º andar. Quem não se comoveu com a cena captadas pelas câmeras de segurança do condomínio de alto padrão, da mãe se espremendo de dor diante do corpo do filho que agoniza, estatelado no chão, já morreu por dentro. Mesmo no desespero, Mirtes não larga mão da coleira que prende o cachorro da patroa. Dispensa-lhe, na tragédia, um cuidado maior do que foi dispensado a Miguel, seu filho.

A mãe sofre mas não larga a coleira do cachorro da patroa

Depois invadiram sua conta nas redes sociais, provavelmente em busca do acervo de seguidores que o episódio lhe angariou, alguns por solidariedade, outros tantos apenas por mórbida curiosidade. Apagam as fotos de Miguel, muitas que só existiam lá. Ser mãe preta no Brasil é um constante luto das mortes sucessivas de seus filhos únicos. Primeiro o filho preto morre a morte física. Depois matam a reputação do filho preto porque filho preto que morre de morte matada nunca é somente um filho, mas sempre é um preto, e um preto que morre de morte matada se transforma no bandido que mereceu morrer em confronto com a polícia, virou auto de resistência. No fim, matam-lhe a lembrança. Apagam suas fotos. Tiram Miguel de Mirtes de todas as formas possíveis. Negam-lhe tanto um corpo a ser abraçado quanto uma memória a ser cultuada.

Não. Definitivamente, o mundo não é justo. O sofrimento dos justos é só isso: sofrimento. Não há recompensa para os que sofrem. Também não há punição para os que fazem sofrer. Aqueles que em na pandemia, se recusam a usar máscaras, tanto para se proteger do coronavírus quanto para esconder seu lado feio. Que na covid enxergam uma oportunidade para se livrar dos indesejados. A economista que comemora a diminuição do déficit da previdência. O bolsominion que vê nos pobres um bando de vagabundos que só sabem fazer filho para viver às custas do governo. O reacionário que acha que quem ganha salário mínimo tem mais direitos que os pagadores de impostos. O bolsonarista que reclama que os índios andam de iPhone e ainda querem que o governo lhes dê água potável. Ora, bebam água contaminada pelo mercúrio do garimpo e deem-se por satisfeitos que algumas partículas de ouro sobrevivem em suspensão. O ministro que diz que ser socialista é fácil, todos nascem assim, solidários, com um bom coração, querendo ajudar os outros. Se ser liberal demanda muitas décadas para se tornar o oposto disso, Paulo Guedes, prefiro que você pegue a sofisticação intelectual de quem leu Keynes 3 vezes no original antes de chegar a Chicago e enfie no cu.

Não passam de gente má. Uma maldita gente má, que se diz religiosa, mas é desprovida de qualquer tipo de empatia com o próximo. Uma maldita gente má que pede comida pelo iFood e faz campanha contra direitos trabalhistas para os entregadores, com medo de encarecer a taxa de entrega de seus lanches. Uma maldita gente má que quer a reabertura da economia mas está protegida pelo trabalho remoto ou pela aposentadoria. Uma maldita gente má que odeia o Estado porque acha que não depende dele, protegida que está pelo seu plano de saúde privado, pela escola privada de seus filhos, pela segurança privada dos condomínios, e acha que tudo isso só não está ao alcance de todos porque o fodido não se esforçou o bastante. O mundo não é justo porque é o mundo desta maldita gente má e porque haja o que houver, esse mundo é imutável, estático, cristalizado no privilégio dos poucos que vivem às custas do trabalho dos que sofrem.

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