O líder tem sempre razão

Como explicar um médico que após 4 décadas de prática de medicina, se renda ao "protocolo prematuro da cloroquina" e ao uso profilático da ivermectina por nenhum outro motivo que não o de não abalar sua convicção na infalibilidade do Mito? O líder tem sempre razão.

Se há um mito que a pandemia ajudou a desmontar é a da excelência do médico brasileiro. Já dava para imaginar que havia algo de deficiente nas faculdades de medicina quando se observa aquele monte de garranchos no bloco de receituário, prática que torna o atendente da farmácia um componente essencial no sucesso dos tratamentos médicos, já que ele é a única pessoa que consegue traduzir o tratamento prescrito em caixas e doses de medicamentos. Ainda assim, apesar da inegável excelência das cadeiras de Caligrafia médica I, II, III e IV, ainda havia uma aura de competência que pairava sobre a classe e que, de certa forma, tornava suportável o esnobismo presente de forma generalizada no meio, traduzido tanto pelos modelos de carros de luxo nos estacionamentos dos hospitais quanto no hábito de se deixar os pacientes mofando na sala de espera como que a deixar bem claro que o tempo do doutor é mais importante do que o tempo dos demais cidadãos.

Tudo balela. Na hora do vamos ver, a razão é deixada de lado em favor de fatores tão irracionais quanto a necessidade de demonstrar apoio ao presidente. Resta evidente que de forma geral a classe médica abraçou - e ainda permanece agarradinha - ao bolsonarismo. Assim, um grupo de Whatsapp que reúna esses profissionais não difere nada do grupo das Tias do Zap. Misturada às teorias da conspiração usuais, às ofensas aos esquerdistas - compreendido como qualquer um que não apoie o Mito de forma incondicional -, aos delírios de grandeza que imaginam um Brasil que tem condições de brigar de igual para igual com a China, inclusive recorrendo a retaliações comerciais, aos louvores a um presidente completamente inoperante, mas que não tem culpa se ninguém o deixa governar, aos pedidos de fechamento do Congresso e do STF, estão as indispensáveis desinformações relativas ao covid-19.

Tem a história que os governadores estão inflando o número de mortos por covid-19 para conseguir mais dinheiro do Governo Federal? Tem sim senhor. Tem a história que os atestados de óbito estão sendo preenchidos como causa mortis covid-19 mesmo que o sujeito tenha morrido de estouro de pneu de caminhão? Tem sim senhor. Tem o boato que a China criou o vírus chinês para implantar seu plano de dominação mundial? Tem sim senhor. De nada adianta apelar à razão, mostrar que os governadores nada ganham inflando o número de mortos por covid-19, que em Brasília os sepultamentos aumentaram em junho 40% em relação ao mesmo mês de 2019, que a China não só também perdeu economicamente com a pandemia como também sequer precisava de qualquer externalidade para se tornar a principal economia do mundo num futuro próximo. Não estão em jogo fatores racionais. Aqui é a emoção a protagonista.

Para a classe médica bolsonarista, o líder tem sempre razão e, uma vez que o líder está prescrevendo tratamentos para covid-19, esses tratamentos têm que funcionar. Ponto final. Que desperdício de tempo desses doutores que passaram 6 anos nos bancos de uma faculdade de medicina e mais 2 anos numa residência quando um curso de paraquedismo já seria o suficiente para sair por aí receitando hidroxicloroquina a torto e a direito. Já tem doutor tomando ivermectina profilaticamente, defendendo a utilização da cloroquina a partir dos primeiros sintomas da doença e chamando os que exigem evidências científicas da eficácia do medicamento de "os detratores da cloroquina". Afinal de contas, é um medicamento seguro e que não trás riscos aos pacientes mesmo que a bula diga o contrário, mas neste o caso, nada que emitir uma ordem para que a Anvisa mude a bula para que ela se adeque aos desejos ou, melhor, aos conhecimentos do líder, não resolva.

Nunca é demais lembrar que não é a primeira vez que o Mito se enamora a uma substância milagrosa. Em seus 28 anos como Deputado Federal anti-establishment, Bolsonaro aprovou apenas 2 leis, uma delas justamente a que liberava a prescrição da fosfoetanolamina para o tratamento do câncer. À época, como agora, não havia qualquer comprovação científica de sua eficácia. Essa comprovação nunca chegou. Só esse precedente já deveria ser suficiente para acender a luz de alerta, senão em toda a população, ao menos na classe médica que, até então, nós supúnhamos embasar nossos tratamentos de saúde em medicina baseada em evidências.

Talvez esse seja o caso dos médicos que estão atuando na linha de frente do combate ao covid-19. Ao menos é o que se pode deduzir quando o Hospital Albert Einstein retira a cloroquina do seu protocolo de tratamento da enfermidade por falta de evidências de sua eficácia. Aí entra um espantoso caso de negação. Não tenho certeza se a elite brasileira quer o melhor para o país, mas tenho certeza absoluta que ela quer o melhor para si e, no caso da assistência médica, o melhor para si é se tratar no Albert Einstein. Se há um centro de excelência em medicina no país, é esse hospital. Ainda assim, entre o protocolo de tratamento do hospital pica das galáxias e o tratamento da clínica da Tia do Zap as pessoas dizem preferir o Whatsapp, o que se torna ainda mais espantoso quando levamos em conta que se há médicos embasando o tratamento, eles não são infectologistas, aqueles da especialidade que realmente importa numa epidemia!

De todas as organizações que experimentaram a cloroquina no tratamento de covid-19, a única que permanece apostando suas fichas no fármaco é a Presidência da República. A OMS já deixou de lado a substância diante da ausência de qualquer evidência de redução tanto das internações quanto da mortalidade dos doentes. Ainda que você creia que a OMS é uma organização comunista (não é), a FDA, que regula drogas e medicamentos nos EUA, também fez o mesmo e, francamente, não dá para dizer que uma agência do país governado por Donald Trump, o cara que faz juras recíprocas de amizade ao Bolsonaro, seja comandada por comunistas.

Gostaria de terminar apelando à razão, mas francamente, olhando pela janela e vendo as ruas cada vez mais cheias ao mesmo tempo em que os números de infectados e mortos continuam crescendo por um lado e a disponibilidade de leitos de UTI caindo por outro, é ilusão imaginar que as autoridades e parte considerável da população estejam agindo com a chave da racionalidade ligada. Tudo o que resta a fazer é se isolar, se você tiver condições, e torcer para que ao menos o coronavírus seja adepto da meritocracia e só leve quem fez por merecer a contaminação. O Brasil não vai ter um pico de covid-19. Em homenagem à geografia da capital federal, o que vamos ter é um imenso planalto de coronavírus.

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