A noite sobre Alcântara

Um dos primeiros mistérios a serem elucidados sobre A noite sobre Alcântara é onde se encontra o livro para comprar caso se tenha interesse em lê-lo. A resposta é: em nenhum lugar. Ou melhor: num sebo. Até onde pude constatar, toda a obra de Josué Montello está fora de catálogo, esgotado em todas as editoras onde alguma vez ele já tenha sido publicado. É uma pena: Josué Montello é um dos grandes escritores brasileiros do século XX, talvez um pouco subestimado por ter vindo do Maranhão, longe da hegemonia sul-sudestina que hegemoniza a cultura nacional e que pouca abertura dá a autores de outras regiões. Para mim, casado com uma maranhense, é deveras agradável me deparar nas páginas de Josué Montello com regionalismos que me eram completamente desconhecidos até conhecer Wandréa. Viagem debalde, por exemplo, que eu sempre entendera como viagem "de balde", assim separado, e fazia a imagem mental de alguém indo de um ponto a outro em São Luís, carregando um balde cheio d'água e me perguntando qual o sentido de significar esse trabalho como algo inútil. Aí me deparo com "debalde", junto, e com o auxílio do Dicio descubro que a palavra existe e, apesar de sua etimologia ser mesmo a junção de "de+balde", o seu significado é exatamente aquele que os maranhenses dão a ela: de modo inútil.

Aliás, um dicionário à mão, seja on-line ou de papel, é de grande auxílio na leitura do livro. Além dos regionalismos, de vez em quando surgem palavras que me eram completamente desconhecidas até deparar com o romance.

Ainda que as reedições de Josué Montello sejam escassas, às vezes é possível encontrar aqui e ali uma edição recente. Os tambores de São Luís, por exemplo, ganhou uma edição especial e caprichada em 2019, com direito a box com 2 volumes. É a que temos aqui em casa, presente de minha cunhada, que conseguiu um exemplar sabe-se lá como porque não o encontrei à venda em nenhum lugar, nem no mundo físico nem no mundo online. São exceções, porém.

É ao mesmo tempo curioso e lamentável. Em qualquer lugar do mundo, procura-se faturar em cima do interesse que um autor da envergadura como Josué Montello desperta. Em Paris, por exemplo, há tours guiados que exploram os locais descritos por Victor Hugo em seus livros. Uma cidade tão desesperadamente à procura de fontes de recursos como Alcântara deveria fazer o mesmo. "Esse aqui é o sobrado do Barão de São Matias". "Neste local ficava o Largo de Santa Quitéria, onde se erguia o sobrado onde morava o Major Natalino". A noite sobre Alcântara deveria ser oferecido aos visitantes logo no porto onde desembarcam os barcos que fazem a travessia entre São Luís e Alcântara. Tal como na época descrita no romance, na prática só se chega à cidade vindo de São Luís atravessando a baía de São Marcos. É até possível chegar a Alcântara de carro, mas ou se encara uma travessia de balsa ou se tem que contornar a baía, uma maratona de incríveis 428 quilômetros e quase 8 horas de viagem. O melhor mesmo é se informar sobre os horários da travessia pois eles dependem da maré e seguir de barco mesmo. Aliás, um conselho valioso caso você um dia resolver encarar a travessia: se o tempo não estiver firme e o mar estiver agitado, chegue cedo e se acomode dentro da cabine. Foi o que fizemos.  Embora nosso objetivo fosse exclusivamente aproveitar o ar-condicionado e nos proteger do calor inclemente da região equatorial, acabou nos poupando de chegarmos a nosso destino molhados e enjoados. Lá dentro, percebíamos o balanço da embarcação, mas os gritos de pânico só  quando a porta que dava acesso à cabine se abria por algum motivo.

Foi nessa ocasião que surgiu o interesse por A noite sobre Alcântara. É uma cidade incrível, fotogênica, singular. Andando pelas ruas da cidade, sob a vista silenciosa de seus casarões coloniais que parecem ter somente dois tipos de estado, fechado ou em ruínas, tem-se a mesma sensação de solidão descrita por Josué Montello, já na introdução do romance, diante do deserto de uma cidade que teve seu apogeu na primeira metade do século XIX seguido por um lento, constante, doloroso e inevitável declínio.

Alcântara

(Atenção: a partir daqui há spoilers)

O romance, aliás, é uma descrição desse declínio sob a ótica de seu personagem principal, o Major Natalino, descendente da aristocracia local, mas que consegue passar relativamente incólume pelo processo de decadência da cidade por conta do soldo que faz jus como veterano da Guerra do Paraguai. Com isso, consegue sobreviver sem o fantasma da miséria que acaba por assombrar a imensa maioria de seus outrora orgulhosos conterrâneos.

A síntese da miséria é o funeral de Fabiano, primo do Major, conhecido por dar os melhores bailes em seu sobrado na época em que Alcântara estava no auge. Quando a decadência chega e as fontes de renda secam, ele começa a vender lentamente tudo o que de valor lhe resta. Dentre esses bens não estava seu sobrado. Inicialmente, quando a situação começa a apertar, os alcantarenses abastados até vendem suas residências. Mais tarde, nem isso mais era possível. Por absoluta falta de interessados, vende-se as obras de arte, a prataria, os móveis, o "recheio do sobrado", tudo o que pode render alguns trocados, por mais míseros que sejam, passa-se a chave na porta e simplesmente larga-se os sobrados à própria sorte. Parte-se para São Luís sem se olhar para trás, sem qualquer perspectiva de retorno. Fabiano não chega a se mudar. Não teve a perspicácia - ou a sorte - de adquirir imóveis ou fazer negócios na capital que lhe permitiriam alguma fonte de renda. Sem alternativa, permanece em Alcântara vendendo seus bens para Davi Cohen, colecionador e negociante das obras de artes alcantarenses, e fechando os cômodos do sobrado à medida que os esvazia. A situação se torna tão dramática que no fim ele se muda para a despensa do sobrado e possui pouco mais do que a rede na qual dorme e as maçanetas das portas que em vão tenta vender ao Davi Cohen, sua última e desesperada tentativa de amealhar alguns trocados. 

Morto, em seu funeral comparecem os remanescentes da aristocracia local, em trajes que já foram elegantes, mas que agora estão fora de moda, cheirando a naftalina, rotos. O Barão de Pirapemas se apresenta com uma sobrecasaca que apresenta furos de traças nos punhos e na gola, meias furadas e chinelos de trança. Discursa culpando a abolição do cativeiro pela ruína que se abateu sobre a cidade, apesar de Fabiano morrer no penúltimo dia de 1899, mais de 11 anos após a promulgação da Lei Áurea. A abolição pode ter acelerado o declínio de Alcântara, mas segundo o diagnóstico de Josué Montello, não é sua causa. A decadência teria começado quando a escravidão ainda era vigente. Em uma visita de inspeção às fazendas do pai, Natalino as encontra em ruínas, semi-abandonadas, a natureza avançando sobre elas para reclamar-lhes de volta. Ao cobrar explicação, o feitor da Flor da Mata lhe informa que tudo começara com surto de varíola que se alastrou entre os escravos e dizimou metade deles. A seguir, vieram 3 quebras de safra e a indiferença (ou impotência) do Visconde de São Marcos que não atende aos apelos de ajuda que o feitor lhe faz. Os poucos escravos que restam nas fazendas acabam por abandoná-las também e não é por acaso que a região de Alcântara, hoje em dia, possui tantos quilombolas ao seu redor.

O Visconde de São Marcos, pai de Natalino, é a síntese da decadência. Depois de perder a renda das fazendas, vai a São Luís, vende as joias da família, um terreno de esquina na Rua das Hortas, a casa da Travessa da Passagem, raspa o que lhe restava no London Bank e transforma tudo em dinheiro vivo, que coloca numa maleta e leva à Alcântara. A partir daí, toda a vez que a Viscondessa lhe pede dinheiro para as despesas da casa, saca uma moeda de ouro do cofre e lhe dá. Quando as moedas acabam, acaba também a vida do Visconde que morre de desgosto, o mesmo desgosto que também mata Fabiano e leva tantos outros nobres arruinados ao suicídio. A certa altura do romance, Maria Olívia, par romântico de Natalino e filha do Barão de São Matias, melhor amigo do Visconde, se espanta que ele havia chegado para visitar o pai em carro de aluguel, puxado por 2 cavalos magros. Outrora ele possuía sua própria charrete, de portas brasonadas. No fim, fazia suas visitas ao amigo a pé mesmo. O mesmo se dá com toda a antiga nobreza de Alcântara. Um dos sinais da decadência que Natalino e Maria Olívia detectam é o silêncio causado pelo sumiço das charretes outrora puxadas por cavalos em arreios de prata e guiadas por escravos de libré. No enterro de Fabiano, ao ser cobrado sobre os cavalos de carroça que puxavam o carro fúnebre Nestor, o coveiro, se desculpa:

- Não há mais cavalos árabes em Alcântara. Os últimos eram os meus, e já morreram.

Maria Olívia é a personagem feminina de maior destaque. Educada em Paris, retorna à Alcântara e logo sofre um acidente montando seu cavalo. A queda quebra-lhe a perna e o pé e a deixa com sequelas pelo resto da vida, fazendo com que ela necessite andar com o apoio de uma bengala. Sofre com a indiferença de sua mãe que inconscientemente a culpa pela morte da filha mais velha e demonstra nítida preferência pela afilhada. Quando Natalino volta da Guerra do Paraguai, toda a cidade espera que ambos se casem o que, pela deliberada falta de iniciativa dele, acaba não acontecendo. Apesar de Josué Montello a retratar como uma mulher à frente de seu tempo, culta, inteligente, progressista e abolicionista, a personagem em si me pareceu unidimensional, não se desviando em momento algum das características nas quais foi enquadrada. Segundo anotações de Josué Montello no livro, Maria Olívia seria uma personagem real. O diário através do qual ela registra seu acidente, sua convalescência e a solidão que experimenta desde que chega de Paris e é agravada tanto pela aparente indiferença de Natalino quanto pela morte de seu pai, também seria real e a maior parte dele teria se perdido numa noite de temporal na década de 40, quando estava abrigado no Instituto Histórico e Geográfico do Maranhão. Se o fato for verdadeiro, terá sido uma lástima.

O Major Natalino, por outro lado, é um personagem complexo, que em certos momentos assume posições nobres - como por exemplo seu engajamento na luta abolicionista - e em outros atitudes completamente desprezíveis. Em especial no seu trato com as mulheres, quando ele é um verdadeiro canalha: engravida a filha do padre em plena igreja e, quando ela aparece grávida, não assume o filho. Ainda que ele se imaginasse estéril, motivo pelo qual ele nunca quis se casar nem com Maria Olívia nem com qualquer outra mulher, o cara comeu a filha do padre na igreja e, na ausência de teste de DNA, a palavra da moça deveria ser suficiente para ele assumir a responsabilidade. Mais adiante, quando seu compadre Nicanor morre num naufrágio em dia de tempestade, ele traça a comadre Honorina e quando ela lhe pede que assuma o relacionamento que toda a cidade já está a par, Natalino se recusa, levando a viúva a se matar cortando os pulsos. 

A única mulher com quem ele tem uma atitude minimamente razoável é Zulmira, escrava com quem ele é apanhado pelo Visconde e a Viscondessa no mirante do sobrado no momento do romance em que eles estão se empenhando para lhe empurrar Ana Dulce, uma prima distante, já que o filho não dá mostras de que vá se casar com Maria Olívia. Levada para ser vendida em São Luís - a Viscondessa se lamenta que Donana Jansen já esteja morta senão ela lhe daria Zulmira de graça - Natalino manda resgatá-la e alforriá-la.

Outro personagem que merece destaque é o Davi Cohen, negociante das artes e do mobiliário de Alcântara. O fato dele ser judeu não me parece mero acaso. Ele se estabelece na cidade e passa a arrematar todo o tipo de "recheio de sobrado" que os nobres lhe oferecem. Se muda para o "melhor sobrado de Alcântara", na Rua da Bela Vista, e em seu interior reúne uma coleção do que havia de melhor do período de opulência da cidade. Procura fazer seu negócio com discrição, mas não é poupado do ódio e do desprezo da antiga aristocracia, que o vê como um aproveitador. Como a simbolizar a completa destruição da cidade, seu sobrado pega fogo na última noite do século XIX, destruindo todas as peças que ele dizia serem únicas e que vinha recolhendo com esmero por um longo tempo.

Alcântara é uma cidade minúscula. Navegando pelo Google Maps, é possível reconstruir os passos dos personagens pelas ruas da cidade. Alguns lugares ainda existem tal como eram na época retratada pelo romance. Outras são facilmente dedutíveis. O sobrado de Fabiano, por exemplo, ficava localizado na Rua do Desterro. Não há Rua do Desterro em Alcântara, ao menos no Google Maps, porém, há a Igreja do Desterro e não é absurdo deduzir que o sobrado ficava na rua da igreja. Se o raciocínio estiver correto, o sobrado não existe mais já que não resta nenhum em pé na Rua do Desterro. Fica a dúvida se ele nunca existiu fora da ficção de Josué Montello ou se desabou como tantos outros que se tornaram ruínas. Também não consegui encontrar o Largo de Santa Quitéria. Navegando pela Internet, consegui encontrar indícios que a Igreja de Santa Quitéria ficava localizada à Rua da Bela Vista, atual Rua da Amargura, e que já não existia na época retratada pelo romance. A localização exata, não encontrei. Imagino que o Largo, onde se erguia o sobrado do Visconde de São Marcos, ficasse próximo à Igreja do Carmo, embora Josué Montello narre que era necessário subir uma ladeira para se chegar ao Largo de Santa Quitéria quando, na verdade, para se chegar a qualquer lugar a partir da Igreja do Carmo é preciso descer uma ladeira. O sobrado do Barão de São Matias não existe como esse nome. Pela localização, na esquina da Rua das Mercês com o Largo de São Matias, me parece que ele seria o sobrado do Barão de São Bento, que se encontra preservado e hoje abriga o Museu Casa Hitórica de Alcântara.

Sinos da Igreja do Desterro

Eu já conhecia a história dos dois palácios do Imperador por Wandréa antes de ler o livro. Em resumo, surgiu um boato que D. Pedro II iria visitar Alcântara e os dois partidos da época, Liberal e Conservador, começaram uma corrida para construir cada qual um palácio luxuoso para hospedar o Imperador quando a visita se consumasse. Acordou-se entre eles que a honra caberia ao partido que estivesse governando Alcântara no momento da visita. O Imperador foi deposto em 1889 sem nunca ter pisado sequer no Maranhão, que dirá em Alcântara. O momento da construção dos palácios coincidiu com a decadência da cidade. No romance, muitos aristocratas empenham nas obras recursos que poderiam ter sido usados para, senão salvar, remediar sua situação. O pai do Major Natalino foi um deles. Os palácios ficaram inacabados e hoje são ruínas nas imediações da Igreja do Carmo.

Ruínas do Palácio do Imperador

O romance tem um tom melancólico do início ao fim. Pudera: é a história da decadência de uma cidade e toda a decadência traz consigo uma tristeza intrínseca. Ainda que a opulência da cidade tenha sido construída à base de sofrimento - o sofrimento dos negros escravizados - é triste constatar que até mesmo o sofrimento deles acabou sendo em vão. No fim, com o incêndio do sobrado de Davi Cohen, pouco de Alcântara restou. Só sobraram as ruínas do sofrimento dos escravos. Nem mesmo a Igreja Matriz de São Matias foi poupada. Dela só restam a fachada e a torre.

Pelourinho e Igreja da Matriz

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