O despejo das famílias do CCBB

Na semana passada foram os militantes do PT que foram presos por exibir uma faixa chamando Bolsonaro daquilo que ele é: Genocida. Rafael Pilha, um dos implicados no caso, está preso até hoje em virtude de uma condenação por desacato que transitou em julgado sem que ele sequer tivesse ciência do processo. Hoje foi a vez do companheiro Thiago Ávila, militante do Subverta e do PSOL, ser arbitrariamente detido por desacato, obstrução e calúnia. A voz de prisão dada pelo Subsecretário de Operações do DF Legal, Alexandre do Nascimento Bittencourt, se deu no momento em que Thiago chegava à ocupação do CCBB para acompanhar as operações de demolições dos barracos que serviam de moradia às pessoas invisíveis que sobrevivem recolhendo material reciclado.

Na terça-feira, a ação do DF-Legal já havia demolido a escolinha erguida por voluntários para dar aulas durante a pandemia às crianças que, sem acesso à internet e sem aulas presenciais, estavam impossibilitadas de acompanhar as tarefas escolares. E aí fica a pergunta: que tipo de país é esse em que se destrói uma escola? Um país em que se fala de meritocracia e se destrói um dos poucos meios que possibilitaria a uma criança pobre uma chance, ainda que tênue, de competir com uma criança que frequenta uma escola particular cuja mensalidade beira os R$ 3.000,00. Sempre que penso nessa situação, me vem à mente a imagem de uma criança, com uma pedra amarrada ao pé, sendo repreendida por não ter chegado na frente de outra criança que fez o mesmo percurso pilotando um jet-ski e que ganhou porque mereceu.

O diálogo travado no momento da prisão revela a surrealidade da situação e a sorte é que hoje em dia, devido à proliferação de celulares, pode-se registrar o que sempre ocorreu mas que sempre ficava na base da palavra da autoridade contra a do cidadão:

- Por que motivo eu estou preso? Eu nem falei oi com o senhor.
- Mas é porque eu estava aguardando o senhor. Vamos lá.

Deduz-se, então, que a "ilegalidade" que o Thiago cometeu foi estar lá, registrando e se opondo à operação ilegal do órgão público que, ironicamente, se chama DF-Legal. E ilegal era a operação porque desde a tarde de terça-feira há uma liminar que impede o despejo da comunidade que ocupa as imediações do CCBB há pelo menos 15 anos. Não são 15 meses ou 15 dias. São 15 anos e o Governo do Distrito Federal, através da figura do seu governador decidiu desalojar as famílias que lá moram durante uma pandemia que já matou mais de 300.000 brasileiros, 5.553 deles brasilienses. Não é segredo para ninguém a identificação que Ibaneis Rocha tem com Bolsonaro e sendo este contrário à "política do fica em casa", parece que Ibaneis resolveu demonstrar seu alinhamento retirando a casa das pessoas. Ao menos das pessoas vulneráveis, invisíveis e que, se mortas, ainda bem porque terá sido retirado dos ombros do Estado o peso de ter que fazer alguma coisa em relação a elas, nem que seja escondê-las da vista dos cidadãos de bem que clamam por Deus acima de todos, mas que parecem imunes à solidariedade explícita no mandamento "amai-vos uns aos outros".

Ninguém é sem-teto porque quer. Ninguém está numa ocupação por capricho. Esta lá porque o Estado é incapaz de lhe assegurar um direito social que lhe é garantido no Artigo 6º da Constituição: "São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição". Ao passar um trator por cima das casas e dos pertences dos moradores, o Estado lhes está punindo por uma incompetência que é sua! E o que se pretende com essa ação? Ao destruir uma comunidade, não se destrói o problema que levou à sua formação. As pessoas continuarão a existir. A única diferença é que agora elas vão ter que existir sem moradia, sem ter mais para onde ir.

Talvez lhes seja oferecida uma vaga num cadastro do órgão que supostamente deveria cuidar da questão da falta de habitação. O problema é que estar no cadastro não significa conseguir uma moradia, ao menos não na urgência de uma pessoa que não tem onde passar a próxima noite e, portanto, não pode esperar anos para ser contemplada. E desde que o consenso neoliberal se consolidou como a ideologia oficial de um Estado cada vez mais mínimo, a possibilidade que ela um dia venha ser contemplada é cada vez menor. Talvez lhes seja oferecida uma vaga num abrigo e os não invisíveis podem achar que essa é uma boa solução. O problema é que os alojamentos dos abrigos são geralmente divididos por gênero: homens para um lado, mulheres e crianças para o outro. Grande parte das vezes, seus animais domésticos não são aceitos. Ir para um abrigo implica necessariamente em desagregação familiar e, assim, aquele mesmo cidadão de bem que clama por Deus acima de todos não pode mais colocar em seu perfil que é defensor da família porque ao menos a família do sem-teto, ele não defende.

Muita coisa nos últimos tempos virou mercadoria e não deveria sê-la. Não faz muito tempo que água se tornou mercadoria. Também há muita coisa que é mercadoria há tanto tempo que naturalizamos essa condição, mas que não deveria sê-la. Moradia é uma delas. Se uma pessoa não tem onde morar, ela não tem onde existir. Porém, enquanto a política econômica estiver colocada acima da política social, enquanto as pessoas estiverem trabalhando em favor da economia e não a economia trabalhando em favor das pessoas, ela continuará a sê-la. Nesse meio tempo, o mínimo que se espera de um Estado que não consegue assegurar aos cidadão o direito à moradia assegurado na Constituição é que pelo menos não  atrapalhe aqueles que, por seus próprios meios, estão se virando para ter um teto sobre suas cabeças, por mais precário e improvisado que este teto seja. Ainda mais quando não há ninguém reclamando a posse da área ocupada, eis que pública e desocupada. Muito ajuda quem não atrapalha. A vida dessas pessoas já é difícil o suficiente para que o Estado venha lhes ameaçar com a possibilidade que de uma hora para outra, um trator há de destruir o pouco dos seus meios de sobrevivência porque uma autoridade assim o quer, desrespeitando inclusive uma decisão judicial.

Por enquanto o estado policial está ganhando. A liminar não chegou a tempo para impedir que a maioria dos barracos fossem derrubados. Os pertences dos moradores foram recolhidos para depósito e só serão liberados mediante apresentação de nota fiscal ou seja, nunca. Thiago foi liberado, mas o propósito de intimidação é nítido. Rafael Pilha continua na Papuda (Liberdade para Rafael Pilha!). Mas a teimosia é a marca característica daqueles que tem que sobreviver em meio a tanta adversidade. Logo os barracos estarão novamente de pé. Logo a escolinha estará novamente funcionando. Não por desafio, não por capricho. É que não há alternativa.

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